Certa vez, depois de um jogo de ténis de mesa, dei boleia a um dos meus adversários.
É um homem já nos seus 60, um pouco falador demais (penso que muita a gente no meio o vê como um pouco chato). Parece mais velho - as mãos tremem-lhe, gagueja um pouco e fala com a boca à banda, ao estilo de quem já sobreviveu a uma valente trombose.
Surpreendentemente o estilo de jogo dele é jovem - joga ao ataque, num estilo de jogo aberto, enérgico e fisicamente exigente. As hesitações que se notam na fala não transparecem durante o jogo - parece que se transfigura.
Assim que acaba o jogo, a cara volta a ficar esmorecida, os ombros rebaixam-se e ele diz-me: "tu-tu-tuuuuu ga-ganhaste-me, mmmmaaasss podias ter-ter-ter-ter jogado melhor!", ao que ele começa a explicar-me os meus erros (com alguma perspicácia, há-que o dizer).
Simpatizo com ele desde que o vi pela primeira vez, há uns dois anos.
Quando o estou a deixar à porta de casa, ele convida-me para um torneio no dia seguinte. É um torneio no clube do bairro dele, onde segundo ele iriam vários jogadores ao nosso nível - e sobretudo o filho dele, por quem é evidente que ele nutre um orgulho que ultrapassa o meramente paternal para atingir a quase idolatria.
Decido aceitar.
No dia seguinte chego cedo. O clube acaba por ser nas traseiras de uma tasca no meio da tapada da ajuda. No salão de baile carregado de fitas e outros adereços festivos - e onde estão (temporariamente) as duas mesas de jogo, encontra-se também um velhote orgulhosamente desdentado, que me sorri e pergunta o nome para ele conferir na curta lista de jogadores. No ar ressoa música pimba em altos berros - começo a perceber que o torneio não é bem o que eu esperava...
Entretanto chega o meu anfitrião - vem chateado porque alguns dos jogadores que ele ansiava para garantir um bom nível afinal não vêm. Não sei porquê, acho que é comum acontecer-lhe estas desistências de última hora...
Os outros adversários começam a chegar - alguns miúdos, e dois velhotes - um deles com boné de pala e tudo, que nunca chegou a tirar. Também chega um homem que é tratado como o "presidente", acompanhado por uma mulher que parecia ir vestida para uma festa. Percebo então que o torneio é o torneio inaugural daquele espaço, fazendo parte das festividades. O presidente é o presidente da junta de freguesia, que foi participar na festa. Quando o meu anfitrião me pede para usar o uniforme da equipa da casa percebo que é uma festa particular e sinto-me a mais, mas decido ser camarada e fazer a minha parte para ajudar à festa.
Entretanto já chegou o filho pródigo. Afinal até já o conheço de vista de alguns torneios - é um jogador bastante acima do meu nível (ou do pai dele), que no entanto tem um ar de quem tem um problema com o nariz, e que tem sempre que o manter virado para cima senão ainda cai - o que o obriga a olhar para os outros de cima para baixo e à distância. Ele também parece ficar um bocado desconcertado com o torneio - provavelmente veio tão enganado como eu.
Ele começa a falar comigo e finalmente faz a pergunta que o incomoda:
"O que é que estás a fazer aqui?",
mas que na realidade soou mais a:
"Eu tenho que vir a estas estopadas porque ele é o meu pai, mas porque é que raio tu estás aqui a aturar isto?"
A atitude dele incomoda-me um bocado, e começo a temer (justificadamente, como vim a comprovar) pelo pai dele.
Entretanto começa o torneio. Calha-me jogar contra os dois velhotes - um deles jogou sempre com o telemóvel no cinto das calças, o outro nunca tirou o seu boné. Ainda consigo divertir-me bastante - acho muita piada a esta componente social do ténis de mesa e não me incomoda nada jogar contra pessoas francamente mais fracas que eu.
A certa altura chega o jogo que eu temia: pai contra filho.
É com muita tristeza que vejo o filho, na altivez do seu nariz empinado e franzido de quem se acha superior a um torneio daqueles a deixar o pai ganhar de uma forma demasiado evidente. O velhote (que não é parvo) fica bastante desgostado no final - o outro nem sequer tentou dar-lhe luta, e a vitória saíu-lhe imerecida. Penso ler na cara do pai a luta entre dois pensamentos antagónicos:
- ou o filho afinal não joga assim tão bem como ele sempre idealizou
- ou o filho está a fazer um frete e não quer estar ali a jogar com o pai~
Entretanto ele vem ter comigo a desculpar o filho dele - "não está num bom dia". Entristece-me pensar quantas vezes é que o filho fará um esforço por estar num bom dia de forma a poder melhorar o dia do pai. Fiquei sinceramente triste por ver este pai que partilha o hobby do filho a ver negado o prazer de o praticar em família com o jogador que mais admira. Achei uma falta de respeito tal que tive vontade de gritar com este filho de coração empedernido, que não mostra o mínimo sinal de se arrepender perante o ar triste do pai.
Quando este jogo acaba fico a pensar no jogo seguinte. É a final entre mim e o pai amargurado, e eu não sei o que fazer. Se jogar para ganhar, provavelmente ganho - mas não quero ficar com a taça daquela festa que não me pertence. Se jogar para perder, corro o risco de tornar ainda mais amarga a vitória do pai.
Decido então jogar para o espectáculo, com movimentos mais difíceis, amplos e rápidos - mas bastante menos eficientes. Penso que deve ser o suficiente para me garantir uma derrota bonita, ao mesmo tempo que agrada ao escasso público e é mais condizente com o espírito de festa (supostamente) reinante.
É um estilo de jogo que me dá particular prazer jogar, e até encaixa bem no estilo energético do meu adversário pelo que consigo manter uma actuação muito convicente, e perder por uma unha negra sem nunca realmente ter que fazer por perder - apenas fiz uma má opção táctica, o que é bastante mais convicente.
No final todos saem a ganhar - o meu adversário que ganhou um belo jogo, o público que ficou satisfeito com um jogo bonito e mexido - à altura de uma final, e eu que me posso deixar afundar num honroso e de certa forma relativamente obscuro segundo lugar.
A minha única fonte de tristeza no final foi pensar que aquele filho ingrato não deve ter sequer percebido a diferença entre a vitória do meu adversário e a do pai dele. Também não sou eu quem lhe vai ensinar - afinal, um bom pai teve ele e não me parece que lhe tenha dado muita atenção...
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