Hoje apeteceu-me dar uma volta pelas velhas pautas.
A certa alturo passo por um estudo de Bach que toquei pela primeira vez há uns 15 anos. Já não devo tocá-lo há vários anos, mas depois de tocar lentamente os primeiros compassos apoiado na pauta, parece que tudo volta - as mãos começam a mexer-se sozinhas - como se estivessem a seguir um ritual complexo, já definitivamente entranhado nos meandros do cérebro. Agora já não é preciso pensar - basta sentir e ouvir o que as mãos têm para contar e cantar. É como se o eu do passado estivesse a falar comigo através destas pautas.
Ele fala-me da minha vida antiga - essa, que já passou e que não voltará mais. Lembra-me de conversas que tive, do dia em que comecei a tocar aquela música, do momento exacto em que comecei a conseguir tocá-la com prazer. Lembra-me da maneira como eu corri para casa para finalmente experimentar aquela outra, enquanto tocava baixo às 2h da manhã para não acordar a família ou os vizinhos. Que bons tempos eram!
Peço-lhe (-me?) para me falar das pessoas desses dias. Ele (eu?) conta-me das pessoas que se lembra, daquela pessoa que gostava muito que eu tocasse esta música, daquela outra que chegou a ouvir-me uma vez a tocar. Por vezes esse velho e jovem conhecido, ao ouvir certa música relembra-me de pessoas que saíram da minha vida ou que já abandonaram a delas - pessoas que já não devo voltar a ver fora destas conversas. Pessoas que estão bem fechadas no cofre da memória, e em cuja fechadura esta pauta entra como uma chave. Ele lembra-me então de conversas, acções, ideias trocadas, vidas vividas e passadas. Por vezes lembra-me de pequenos pormenores que só podem estar de alguma forma escritas no meio dos rabiscos negros no papel amarelecido, porque certamente que já não me poderia lembrar deles.
Fala-me das coisas boas e más, das coisas que tenho saudades e daquelas que não sinto a falta. Dos sonhos desfeitos e dos objectivos atingidos. Relembra-me os meus ideais da altura, dos meus valores, dos meus amigos e conhecidos. Das dores que passei, dos prazeres que vivi.
Enquanto me lembro de como era penso no que sou. (re)Avalio-me - tanto na técnica das mãos como na maneira de viver. Comparo-me comigo próprio - penso em mim com 25, 20, 15 anos, sentado num outro banco a tocar num outro piano e a viver uma outra vida - mas a tocar aquelas mesmas pautas, aquelas mesmas músicas. Como tudo mudou, e como tanta coisa permanece igual! Continuo a gostar imenso desta passagem - continuo a não conseguir tocar aquele compasso como deve de ser, ainda faço os mesmos erros - mas de maneira diferente. Continuo tímido, mas já menos notam. Ainda gosto de matemática, mas já aprendi a gostar do mundo das pessoas. Ainda sou uma pessoa diferente aos olhos dos outros, mas já vivo bem com isso. Já percebi que nunca vou poder ter tudo o que quero, mas ainda bem.
Quantas histórias eu leio nestas pautas. Quantas recordações escondidas nas entrelinhas, quantas mensagens escondidas no meio das notas. É impossível lembrar-me de tudo numa só noite, tal como é não consigo escrever tudo de uma só vez. Teria que viver a minha vida toda outra vez para ter tempo de conseguir tirar toda a informação que está dentro destas caixas poeirentas, para poder sentir de novo todas as emoções entranhadas.
Como é que será que lá cabe tanta coisa dentro?
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7 comments:
A mim essas pautas lembram é as noites em que encalhavas numa nota e a musica não saia dali. e eu com aulas no dia a seguir...
Há objectos que nos remetem automaticamente para determinada situação ou periodo da nossa vida e acabam por ganhar uma história própria
Há um ano fui a uma festa árabe com uma amiga e deram-nos daqueles lenços para por à cintura, que eu guardei para carnaval, peças de teatro e etc.
Nesse fim de semana ela descobriu que estava gravemente doente. os lenços estão guardados mas não consigo olhar para eles sem um certo sabor amargo
Pois - era nessas noites em que aparecias na sala com "aquela" cara em que eu ficava a pensar: "mas porque é que em vez de uma irmã os meus pais não me deram um cão?".
Pensando bem acho que é por causa de ti que hoje em dia tenho um piano em que posso pôr fones...
Miguelb
Ainda só li metade deste post e já acho que é o melhor de sempre do blog. É um registo diferente. "Aquele" registo, ou musica, que eu gosto. Luis
Confesso que foi um post que me deu um particular prazer em escrever - e foi escrito ainda muito perto do "calor do momento".
Miguelb
bem, que as minhas longas noites de sofrimento tenham servido para alguma coisa...
aposto que os vizinhos me agradeceriam se soubessem.
Fantastico. Já li duas vezes. Parabéns. Pela escrita e pelo conteúdo. Um abraço. Luis
Diferentes vivências para uma única essência.
Absolutamente fascinante!
Gostei muito, mesmo muito!
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