Thursday, November 1, 2007

Relembrando velhas pautas

Hoje apeteceu-me dar uma volta pelas velhas pautas.

A certa alturo passo por um estudo de Bach que toquei pela primeira vez há uns 15 anos. Já não devo tocá-lo há vários anos, mas depois de tocar lentamente os primeiros compassos apoiado na pauta, parece que tudo volta - as mãos começam a mexer-se sozinhas - como se estivessem a seguir um ritual complexo, já definitivamente entranhado nos meandros do cérebro. Agora já não é preciso pensar - basta sentir e ouvir o que as mãos têm para contar e cantar. É como se o eu do passado estivesse a falar comigo através destas pautas.

Ele fala-me da minha vida antiga - essa, que já passou e que não voltará mais. Lembra-me de conversas que tive, do dia em que comecei a tocar aquela música, do momento exacto em que comecei a conseguir tocá-la com prazer. Lembra-me da maneira como eu corri para casa para finalmente experimentar aquela outra, enquanto tocava baixo às 2h da manhã para não acordar a família ou os vizinhos. Que bons tempos eram!
Peço-lhe (-me?) para me falar das pessoas desses dias. Ele (eu?) conta-me das pessoas que se lembra, daquela pessoa que gostava muito que eu tocasse esta música, daquela outra que chegou a ouvir-me uma vez a tocar. Por vezes esse velho e jovem conhecido, ao ouvir certa música relembra-me de pessoas que saíram da minha vida ou que já abandonaram a delas - pessoas que já não devo voltar a ver fora destas conversas. Pessoas que estão bem fechadas no cofre da memória, e em cuja fechadura esta pauta entra como uma chave. Ele lembra-me então de conversas, acções, ideias trocadas, vidas vividas e passadas. Por vezes lembra-me de pequenos pormenores que só podem estar de alguma forma escritas no meio dos rabiscos negros no papel amarelecido, porque certamente que já não me poderia lembrar deles.

Fala-me das coisas boas e más, das coisas que tenho saudades e daquelas que não sinto a falta. Dos sonhos desfeitos e dos objectivos atingidos. Relembra-me os meus ideais da altura, dos meus valores, dos meus amigos e conhecidos. Das dores que passei, dos prazeres que vivi.

Enquanto me lembro de como era penso no que sou. (re)Avalio-me - tanto na técnica das mãos como na maneira de viver. Comparo-me comigo próprio - penso em mim com 25, 20, 15 anos, sentado num outro banco a tocar num outro piano e a viver uma outra vida - mas a tocar aquelas mesmas pautas, aquelas mesmas músicas. Como tudo mudou, e como tanta coisa permanece igual! Continuo a gostar imenso desta passagem - continuo a não conseguir tocar aquele compasso como deve de ser, ainda faço os mesmos erros - mas de maneira diferente. Continuo tímido, mas já menos notam. Ainda gosto de matemática, mas já aprendi a gostar do mundo das pessoas. Ainda sou uma pessoa diferente aos olhos dos outros, mas já vivo bem com isso. Já percebi que nunca vou poder ter tudo o que quero, mas ainda bem.


Quantas histórias eu leio nestas pautas. Quantas recordações escondidas nas entrelinhas, quantas mensagens escondidas no meio das notas. É impossível lembrar-me de tudo numa só noite, tal como é não consigo escrever tudo de uma só vez. Teria que viver a minha vida toda outra vez para ter tempo de conseguir tirar toda a informação que está dentro destas caixas poeirentas, para poder sentir de novo todas as emoções entranhadas.

Como é que será que lá cabe tanta coisa dentro?

7 comments:

J said...

A mim essas pautas lembram é as noites em que encalhavas numa nota e a musica não saia dali. e eu com aulas no dia a seguir...

Há objectos que nos remetem automaticamente para determinada situação ou periodo da nossa vida e acabam por ganhar uma história própria

Há um ano fui a uma festa árabe com uma amiga e deram-nos daqueles lenços para por à cintura, que eu guardei para carnaval, peças de teatro e etc.

Nesse fim de semana ela descobriu que estava gravemente doente. os lenços estão guardados mas não consigo olhar para eles sem um certo sabor amargo

Anonymous said...

Pois - era nessas noites em que aparecias na sala com "aquela" cara em que eu ficava a pensar: "mas porque é que em vez de uma irmã os meus pais não me deram um cão?".
Pensando bem acho que é por causa de ti que hoje em dia tenho um piano em que posso pôr fones...

Miguelb

Anonymous said...

Ainda só li metade deste post e já acho que é o melhor de sempre do blog. É um registo diferente. "Aquele" registo, ou musica, que eu gosto. Luis

Anonymous said...

Confesso que foi um post que me deu um particular prazer em escrever - e foi escrito ainda muito perto do "calor do momento".

Miguelb

J said...

bem, que as minhas longas noites de sofrimento tenham servido para alguma coisa...

aposto que os vizinhos me agradeceriam se soubessem.

Anonymous said...

Fantastico. Já li duas vezes. Parabéns. Pela escrita e pelo conteúdo. Um abraço. Luis

Anonymous said...

Diferentes vivências para uma única essência.
Absolutamente fascinante!
Gostei muito, mesmo muito!