O rapaz entra no balneário acompanhado do pai, que lhe segura o cotovelo.
Deve ter uns 15 anos, magro. É evidente que sofre de uma paralisia cerebral - o caminhar difícil, pés virados para dentro, joelhos a roçarem-se, mãos num ângulo estranho.
O rapaz senta-se num banco um pouco distante de mim, mas onde o posso ver bem. Decido vestir-me mais devagar, para sentir a dinâmica familiar.
O pai - que deve rondar os 50 - começa a despi-lo, sem palavras. O rapaz vai divagando o olhar pelas paredes brancas, sem qualquer vislumbre de interesse pelo espaço onde se encontra, mas sempre sem encarar o pai que se debruça sobre ele.
Dá para perceber que o pai não está habituado a vestir o filho. Os gestos não são fluidos, o corpo está tenso. Nota-se uma certa irritação nos gestos - talvez mesmo uma certa rispidez. Não há carinho nesta tarefa, apenas algo a desempenhar - um obstáculo a ultrapassar.
A certa altura resmunga. Enganou-se a vestir o fato de banho ao rapaz e agora vai ter que recomeçar a tarefa. O rapaz parece não se importar - continua a obedecer as ordens mudas do pai: levantar o rabo, levantar os braços, levantar as pernas...
Continua impavidamente a varrer o espaço com a cabeça, os olhos mortiços que não se fixam em nada, vazios de interesse.
A certa altura repara em mim a reparar nele (será que percebe que estou a estudá-lo?). Mantenho o olhar fixo nele durante 1 ou 2 segundos e decido desviar os olhos e continuar a vestir-me.
Começo a pensar no que será ser aquele pai desgastado e agastado, que parece ter sido arrastado para aquela tarefa por vontade de outrem. Uma tarefa que podia ser de convívio e de partilha, mas que mais parece ser um castigo.
Tento imaginar como será ter que vestir um adolescente todos os dias. Dar-lhe de comer, olhar por ele... E olhar para o futuro e não ver o dia em que essas tarefas deixam de ser necessárias. Não conseguir ver o dia em que os papéis se invertem e o filho toma conta do pai.
Uma pergunta forma-se na minha cabeça acima de todas as outras: que sonhos terá este pai para esta criança? Que esperanças alimentará?
Começo a tentar imaginar a vida deste pai: quando é que terá sido a primeira vez que soube que ia ter um filho com este problema? Como é que terá recebido a notícia? Como fará para tomar conta da criança nos dias em que vai trabalhar? Será que lhe lê uma história antes de se deitar? Várias perguntas que gostaria de perguntar para perceber o que separa esta criança das outras.
Tento pôr-me no lugar dele, mas dói-me demais pensar o que seria ter um filho assim. Lembro-me dos medos que senti antes de os meus filhos nascerem - de fazer contas às probabilidades, de jogar com os números. Lembro-me de tentar imaginar como reagiria se algo semelhante me acontecesse - e das difíceis conclusões a que cheguei. Lembro-me do alívio dos resultados dos exames, da felicidade de os ver nascer sãos.
Entretanto o rapaz levanta-se. Tem que ir à casa de banho. O pai leva-o pelo cotovelo e volta sozinho - aparentemente o rapaz é suficientemente independente para fazer a sua higiene pessoal.
Acabo de me vestir e vou-me embora. Pelo caminho começo a analisar-me a mim mesmo. Analiso a minha tentativa de compreender o pai e constato que não tentei fazer o mesmo pelo filho. Tento perceber porquê.
Tento imaginar o que seria ser aquele filho e percebo que não consigo!
Por muito que tente, não consigo imaginar o que será ser aquela criança. Como será que ele vê o mundo? O que é que será que se consegue aperceber? Será que estas perguntas fazem sequer sentido na sua realidade?
Tento fazer a ligação entre os meus princípios e uma vida assim - e também aí falho. Descubro que as minhas regras não fazem sentido perante esta realidade. É como estar num universo diferente com outras leis físicas - nada bate certo. Afinal, como é que posso relacionar princípios como meritocracia, racionalidade ou moral com uma realidade brutal como esta?
Será que os meus princípios são demasiado frágeis para suportar o peso desta realidade? Se calhar por isso é que me sinto desconfortável face a estas pessoas - se calhar é porque elas me fazem ver que as minhas ideias duras e frias talvez não valham tanto quanto eu penso...
Thursday, October 11, 2012
Wednesday, October 10, 2012
Encontrar o meu lugar
[…]
You're going to fail [to have a great career] because you're not going to do it, because you will have invented a new excuse, any excuse to fail to take action, and this excuse I've heard so many times. "Yes, I would pursue a great career, but I value human relationships more than accomplishment. I want to be a great friend. I want to be a great spouse. I want to be a great parent, and I will not sacrifice them on the altar of great accomplishment."
[...]
But what do you mean? That's what you expect me to say. You really think it's appropriate that you should actually take children and use them as a shield? You know what will happen someday, you ideal parent? The kid will come to you someday and say, "I know what I want to be. I know what I'm going to do with my life."
You are so happy! It's the conversation a parent wants to hear, because your kid's good in math, and you know you're going to like what comes next. Says your kid, "I have decided I want to be a magician. I want to perform magic tricks on the stage."
And what do you say? You say, "Umm ... that's risky, kid. Might fail, kid. Don't make a lot of money at that, kid. You know, I don't know, kid, you should think about that again, kid, you're so good at math, why don't you — "
And the kid interrupts you, and says, "But it is my dream. It is my dream to do this." And what are you going to say? You know what you're going to say? "Look kid. I had a dream once, too, but -- but."
So how are you going to finish the sentence with your "but"? "
... But. I had a dream too, once, kid, but I was afraid to pursue it."
O discurso é brilhante - acho difícil passar-lhe indiferente - embora as ideias sejam controversas.
A verdade é que nem toda a gente quer ter uma grande carreira. Acho que me sentiria pior comigo mesmo se daqui a alguns anos olhasse para trás e achasse que tinha descurado a família e os amigos em favor de ambições carreiristas, do que se caísse no erro contrário.
Há que dizer que apenas valorizo o trabalho que faço - não a carreira que persigo - e não tenho grandes dificuldades em me auto motivar, pelo que não me custa encontrar a felicidade no trabalho que faço, mesmo que não seja um "grande trabalho".
Mas e se eu substituísse a palavra "carreira" simplesmente por "trabalho"? Aí a análise já fica diferente, porque aí já estaria a falar de algo que valorizo...
Uma vez uma pessoa que respeito muito disse-me:
"Miguel, o que é que está aqui a fazer? Devia estar era a procurar a cura para o cancro!"
Na altura recebi a frase como um elogio. Depois de ir para casa pensar no que significava, comecei a encará-la como uma crítica (tenho a certeza que não era este o sentido que a pessoa lhe queria dar).
A verdade é que frequentemente sinto que podia fazer mais, que estou subaproveitado. A ser verdade, será que é moralmente correcto contentar-me com o que faço em vez de procurar contribuir mais ou de maneira diferente? Será que não devia procurar um lugar onde me adaptasse melhor? Onde as minhas capacidades e potencial pudessem ser melhor aproveitadas? Onde pudesse ter um maior impacto? Isto para não falar na satisfação pessoal de sentir o desafio, o prazer da luta e a importância do resultado do meu trabalho.
Ou será que estou simplesmente a ser presunçoso, ou egoísta? Se calhar o trabalho que faço é tão válido como qualquer outro... Se calhar já estou no sítio onde devo estar... Se calhar há outras maneiras de contribuir que não exijam mudar de emprego, de cidade, de país ou de vida... Que não obriguem toda a minha família a queimar os barcos e a correr atrás da minha sombra, enquanto persigo os meus objectivos. Se calhar posso contentar-me em continuar a procurar o desafio nas pequenas coisas, nos detalhes que me rodeiam - afinal, aparentemente não tenho dificuldade em encontrar encanto e interesse naquilo que me rodeia...
E por falar em sonhos, o que dizer dos sonhos desfeitos da comunidade que me rodeia? O que dizer do impacto sobre avós, tios, filhos, conjugue, que se veriam forçados (pelo menos alguns) a viver a minha vida em vez de poderem viver a deles? Que dizer da estabilidade perdida, laços rasgados, raízes arrancadas - será que tenho o direito de lhes pedir tanto? Pior - será que tenho o direito de lhes impor tanto?
Há que dizer que o momento "but then you were born" me atormenta. Não me imagino a usar a frase num sentido acusatório, mas consigo imaginar-me a ter que usá-la num sentido educativo: se alguma vez quiser incentivar um dos meus filhos a tomar uma decisão semelhante, o que é que lhe vou dizer? Que exemplo é que lhe vou poder mostrar? "Faz o que eu digo, não faças o que eu fiz"? Parece-me o tipo de atitude que costumo criticar nas outras pessoas...
Dantes, tudo se resumia a: o que é que vou querer ver quando daqui a uns anos olhar para o percurso que estou a traçar agora? O que é que vou valorizar? Mais importante ainda - o que é que vou criticar nas escolhas que faço? Que experiências vou desejar ter tido? Que dificuldades vou desejar ter evitado?
Mas agora não! Isto era dantes - agora é diferente. Agora também tenho que pensar: o que é que os meus filhos vão pensar sobre as escolhas que fiz por eles?
... But. I had a dream too, once, kid, but I was afraid to pursue it."
Or, are you going to tell him this:
"I had a dream once, kid... But then you were born!"
Do you really want to use your family, do you really ever want to look at your spouse and your kid and see your jailers? There was something you could have said to your kid when he or she said, "I have a dream." You could have said, looked the kid in the face, and said, "Go for it, kid, just like I did." But you won't be able to say that because you didn't. So you can't.
O discurso é brilhante - acho difícil passar-lhe indiferente - embora as ideias sejam controversas.
A verdade é que nem toda a gente quer ter uma grande carreira. Acho que me sentiria pior comigo mesmo se daqui a alguns anos olhasse para trás e achasse que tinha descurado a família e os amigos em favor de ambições carreiristas, do que se caísse no erro contrário.
Há que dizer que apenas valorizo o trabalho que faço - não a carreira que persigo - e não tenho grandes dificuldades em me auto motivar, pelo que não me custa encontrar a felicidade no trabalho que faço, mesmo que não seja um "grande trabalho".
Mas e se eu substituísse a palavra "carreira" simplesmente por "trabalho"? Aí a análise já fica diferente, porque aí já estaria a falar de algo que valorizo...
Uma vez uma pessoa que respeito muito disse-me:
"Miguel, o que é que está aqui a fazer? Devia estar era a procurar a cura para o cancro!"
Na altura recebi a frase como um elogio. Depois de ir para casa pensar no que significava, comecei a encará-la como uma crítica (tenho a certeza que não era este o sentido que a pessoa lhe queria dar).
A verdade é que frequentemente sinto que podia fazer mais, que estou subaproveitado. A ser verdade, será que é moralmente correcto contentar-me com o que faço em vez de procurar contribuir mais ou de maneira diferente? Será que não devia procurar um lugar onde me adaptasse melhor? Onde as minhas capacidades e potencial pudessem ser melhor aproveitadas? Onde pudesse ter um maior impacto? Isto para não falar na satisfação pessoal de sentir o desafio, o prazer da luta e a importância do resultado do meu trabalho.
Ou será que estou simplesmente a ser presunçoso, ou egoísta? Se calhar o trabalho que faço é tão válido como qualquer outro... Se calhar já estou no sítio onde devo estar... Se calhar há outras maneiras de contribuir que não exijam mudar de emprego, de cidade, de país ou de vida... Que não obriguem toda a minha família a queimar os barcos e a correr atrás da minha sombra, enquanto persigo os meus objectivos. Se calhar posso contentar-me em continuar a procurar o desafio nas pequenas coisas, nos detalhes que me rodeiam - afinal, aparentemente não tenho dificuldade em encontrar encanto e interesse naquilo que me rodeia...
E por falar em sonhos, o que dizer dos sonhos desfeitos da comunidade que me rodeia? O que dizer do impacto sobre avós, tios, filhos, conjugue, que se veriam forçados (pelo menos alguns) a viver a minha vida em vez de poderem viver a deles? Que dizer da estabilidade perdida, laços rasgados, raízes arrancadas - será que tenho o direito de lhes pedir tanto? Pior - será que tenho o direito de lhes impor tanto?
Há que dizer que o momento "but then you were born" me atormenta. Não me imagino a usar a frase num sentido acusatório, mas consigo imaginar-me a ter que usá-la num sentido educativo: se alguma vez quiser incentivar um dos meus filhos a tomar uma decisão semelhante, o que é que lhe vou dizer? Que exemplo é que lhe vou poder mostrar? "Faz o que eu digo, não faças o que eu fiz"? Parece-me o tipo de atitude que costumo criticar nas outras pessoas...
Dantes, tudo se resumia a: o que é que vou querer ver quando daqui a uns anos olhar para o percurso que estou a traçar agora? O que é que vou valorizar? Mais importante ainda - o que é que vou criticar nas escolhas que faço? Que experiências vou desejar ter tido? Que dificuldades vou desejar ter evitado?
Mas agora não! Isto era dantes - agora é diferente. Agora também tenho que pensar: o que é que os meus filhos vão pensar sobre as escolhas que fiz por eles?
Voltar a escrever
Hoje lembrei-me de passar por aqui para relembrar o passado. Não sabia se o blog ainda estaria activo, ou se os meus pensamentos estariam perdidos de vez. Depois de 5 anos sem cá vir perguntava-me como soariam os ecos dessas palavras que tinha escrito há tanto tempo.
Fiquei satisfeito com o que li. Senti um misto de orgulho e preocupação por ver o pouco que mudei durante este período. Orgulho pela congruência, preocupação com a estagnação.
Os princípios ainda são os mesmos - o mérito, a moral, os valores do trabalho - talvez um pouco temperados por uma visão menos extremada - mas mesmo assim muito vincada.
Os fins também não mudaram muito - o aprender, o analisar, o hedonismo do trabalho (uma bela expressão para o que muitas pessoas descreveriam como "workoholismo") - a tal falta de ambição agora transformada em algo diferente (um tema a desenvolver mais tarde?). Eventualmente alguns objetivos novos que decorrem da nova realidade.
O meio envolvente - esse mudou completamente. Novas responsabilidades, uma nova visão do mundo a quatro, uma grande perda de liberdade individual, uma mudança radical de estilo de vida. No trabalho uma evolução (relativamente) lenta e gradual, mas que mesmo assim provocou as suas mudanças na minha maneira de estar.
Mesmo o mundo tem mudado - tem mudado mesmo muito e muito depressa. Preocupa-me pensar que o mundo está a mudar muito mais depressa do que eu - mas já estou outra vez a divagar em (possíveis) futuros posts.
Olhando para trás a verdade é que não consigo perceber porque é que parei de escrever, o que de certa maneira acaba por ser coerente, uma vez que também não sei muito bem porque é que comecei.
No entanto sei porque é que estou a pensar voltar a escrever: porque li estes posts de há 5 anos atrás e gostei de os ler. Gostei de recordar as "fotografias" e de me reencontrar nas auto análises. Agora percebo que mais que outra coisa estes posts são ecos para eu escutar mais tarde e perceber a distância que separa o presente do passado.
Olhando para trás tenho pena de não ter recebido mais opiniões - gostei de reler os comentários, sobretudo os mais opinativos e longos. Valorizo o facto de as pessoas se darem ao trabalho de oferecer a sua opinião - tenho pena que não o façam mais vezes.
Fiquei satisfeito com o que li. Senti um misto de orgulho e preocupação por ver o pouco que mudei durante este período. Orgulho pela congruência, preocupação com a estagnação.
Os princípios ainda são os mesmos - o mérito, a moral, os valores do trabalho - talvez um pouco temperados por uma visão menos extremada - mas mesmo assim muito vincada.
Os fins também não mudaram muito - o aprender, o analisar, o hedonismo do trabalho (uma bela expressão para o que muitas pessoas descreveriam como "workoholismo") - a tal falta de ambição agora transformada em algo diferente (um tema a desenvolver mais tarde?). Eventualmente alguns objetivos novos que decorrem da nova realidade.
O meio envolvente - esse mudou completamente. Novas responsabilidades, uma nova visão do mundo a quatro, uma grande perda de liberdade individual, uma mudança radical de estilo de vida. No trabalho uma evolução (relativamente) lenta e gradual, mas que mesmo assim provocou as suas mudanças na minha maneira de estar.
Mesmo o mundo tem mudado - tem mudado mesmo muito e muito depressa. Preocupa-me pensar que o mundo está a mudar muito mais depressa do que eu - mas já estou outra vez a divagar em (possíveis) futuros posts.
Olhando para trás a verdade é que não consigo perceber porque é que parei de escrever, o que de certa maneira acaba por ser coerente, uma vez que também não sei muito bem porque é que comecei.
No entanto sei porque é que estou a pensar voltar a escrever: porque li estes posts de há 5 anos atrás e gostei de os ler. Gostei de recordar as "fotografias" e de me reencontrar nas auto análises. Agora percebo que mais que outra coisa estes posts são ecos para eu escutar mais tarde e perceber a distância que separa o presente do passado.
Olhando para trás tenho pena de não ter recebido mais opiniões - gostei de reler os comentários, sobretudo os mais opinativos e longos. Valorizo o facto de as pessoas se darem ao trabalho de oferecer a sua opinião - tenho pena que não o façam mais vezes.
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