Thursday, October 11, 2012

Fotografia: olhos mortiços

O rapaz entra no balneário acompanhado do pai, que lhe segura o cotovelo.

Deve ter uns 15 anos, magro. É evidente que sofre de uma paralisia cerebral - o caminhar difícil, pés virados para dentro, joelhos a roçarem-se, mãos num ângulo estranho.


O rapaz senta-se num banco um pouco distante de mim, mas onde o posso ver bem. Decido vestir-me mais devagar, para sentir a dinâmica familiar.

O pai - que deve rondar os 50 - começa a despi-lo, sem palavras. O rapaz vai divagando o olhar pelas paredes brancas, sem qualquer vislumbre de interesse pelo espaço onde se encontra, mas sempre sem encarar o pai que se debruça sobre ele.

Dá para perceber que o pai não está habituado a vestir o filho. Os gestos não são fluidos, o corpo está tenso. Nota-se uma certa irritação nos gestos - talvez mesmo uma certa rispidez. Não há carinho nesta tarefa, apenas algo a desempenhar - um obstáculo a ultrapassar.

A certa altura resmunga. Enganou-se a vestir o fato de banho ao rapaz e agora vai ter que recomeçar a tarefa. O rapaz parece não se importar - continua a obedecer as ordens mudas do pai: levantar o rabo, levantar os braços, levantar as pernas...

Continua impavidamente a varrer o espaço com a cabeça, os olhos mortiços que não se fixam em nada, vazios de interesse.
A certa altura repara em mim a reparar nele (será que percebe que estou a estudá-lo?). Mantenho o olhar fixo nele durante 1 ou 2 segundos e decido desviar os olhos e continuar a vestir-me.


Começo a pensar no que será ser aquele pai desgastado e agastado, que parece ter sido arrastado para aquela tarefa por vontade de outrem. Uma tarefa que podia ser de convívio e de partilha, mas que mais parece ser um castigo.

Tento imaginar como será ter que vestir um adolescente todos os dias. Dar-lhe de comer, olhar por ele... E olhar para o futuro e não ver o dia em que essas tarefas deixam de ser necessárias. Não conseguir ver o dia em que os papéis se invertem e o filho toma conta do pai.
Uma pergunta forma-se na minha cabeça acima de todas as outras: que sonhos terá este pai para esta criança? Que esperanças alimentará?

Começo a tentar imaginar a vida deste pai: quando é que terá sido a primeira vez que soube que ia ter um filho com este problema? Como é que terá recebido a notícia?  Como fará para tomar conta da criança nos dias em que vai trabalhar? Será que lhe lê uma história antes de se deitar? Várias perguntas que gostaria de perguntar para perceber o que separa esta criança das outras.

Tento pôr-me no lugar dele, mas dói-me demais pensar o que seria ter um filho assim. Lembro-me dos medos que senti antes de os meus filhos nascerem - de fazer contas às probabilidades, de jogar com os números. Lembro-me de tentar imaginar como reagiria se algo semelhante me acontecesse - e das difíceis conclusões a que cheguei. Lembro-me do alívio dos resultados dos exames, da felicidade de os ver nascer sãos.


Entretanto o rapaz levanta-se. Tem que ir à casa de banho. O pai leva-o pelo cotovelo e volta sozinho - aparentemente o rapaz é suficientemente independente para fazer a sua higiene pessoal.

Acabo de me vestir e vou-me embora. Pelo caminho começo a analisar-me a mim mesmo. Analiso a minha tentativa de compreender o pai e constato que não tentei fazer o mesmo pelo filho. Tento perceber porquê.
Tento imaginar o que seria ser aquele filho e percebo que não consigo!

Por muito que tente, não consigo imaginar o que será ser aquela criança. Como será que ele vê o mundo? O que é que será que se consegue aperceber? Será que estas perguntas fazem sequer sentido na sua realidade?

Tento fazer a ligação entre os meus princípios e uma vida assim - e também aí falho. Descubro que as minhas regras não fazem sentido perante esta realidade. É como estar num universo diferente com outras leis físicas - nada bate certo. Afinal, como é que posso relacionar princípios como meritocracia, racionalidade ou moral com uma realidade brutal como esta?

Será que os meus princípios são demasiado frágeis para suportar o peso desta realidade? Se calhar por isso é que me sinto desconfortável face a estas pessoas - se calhar é porque elas me fazem ver que as minhas ideias duras e frias talvez não valham tanto quanto eu penso...


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