Thursday, November 1, 2012

Fotografia: dormindo com um desconhecido

Na minha empresa existe uma conferência anual que junta milhares de pessoas de todo o mundo em Seattle. As pessoas ficam hospedadas em hotéis, normalmente em quartos de dois.

Tenho sempre muito cuidado a escolher o meu companheiro de quarto - até ao ano passado, em que ele desistiu à última da hora e a organização me designou aleatoriamente um novo companheiro.



Já estou no quarto quando ele entra. É alto e encorpado. Tem um olhar doce e cansado por trás de uns óculos de aspecto frágil.
Acabou de chegar do Senegal - muitas horas de avião em cima. Traz uma mala de viagem de aspecto normal, e veste de uma forma prática e simples, mas com um leve toque a formal - o tipo de roupa que associo a alguém que gosta de cumprir regras.
Cumprimenta-me num bom inglês, atirando-me a mão enorme com um gesto largo e de sorriso aberto.

Começamos a falar sobre o evento - ele acabou de entrar na empresa e nunca participou em nenhum. Depois de lhe explicar a dinâmica da conferência e de lhe dar alguns conselhos, a conversa evolui suavemente para outros tópicos. Falamos dos americanos, dos europeus e dos africanos. Ele começa a fechar os olhos durante a conversa e decido poupá-lo. Ele insiste em tentar conversar - nota-se que é educado - mas o sono está a levar-lhe a melhor e acaba por desistir.
Quando já não aguenta mais levanta-se, vai à casa de banho, volta, pergunta-me para que lado fica o mar, pega num tapete e ajoelha-se no chão a orar. Depois vai deitar-se e adormece.


Nos dias seguintes começa a ficar mais à vontade. Certa amanhã acordo com o resmonear das suas orações. Fico na cama a tentar perceber o que diz, evidentemente sem sucesso.


Numa das noites consigo que a conversa vá para onde quero - a religião.
Ele conta-me alegremente como funciona a religião no Senegal.
Fala-me das diferenças entre o islamismo africano e do médio-oriente. Fala-me do carácter tolerante da religião africana. Conta-me como funcionam as datas religiosas, como é que são vividas pelas pessoas. Como é que cada um segue a religião e como é que cada um a contorna e ajusta ás suas necessidades.
Mostra-me o tapete que usa para orar, explica-me a finalidade das abluções e mostra-me a app que tem no telefone para descobrir Meca .


A certa altura fala-me das mulheres. Diz-me que sai caro casar com mais que uma. Existem regras a seguir - todas as mulheres têm que ser tratadas da mesma forma pelo marido. O homem tem que dormir o mesmo número de noites com cada mulher, e se der uma prenda a uma tem que dar prendas equivalentes às outras. Conta-me que a poligamia não é muito frequente - sobretudo num país pobre como o Senegal.
Pergunta-me o que acho. Respondo-lhe cuidadosamente que não sou contra a poligamia, desde que as mulheres tenham os mesmos direitos que os homens. Ele faz uma cara de surpresa, solta um pequeno uivo e diz-me que há algumas pessoas no país dele que pensam como eu. Di-lo com um ar que eu classificaria de cuidadoso e educado choque. Imagino-o a imaginar uma mulher a casar com vários homens e percebo o uivo.

Aparentemente a minha observação não foi mal recebida, porque a conversa continua. Pergunta-me como é comigo no meu país. Explico-lhe que represento uma minoria agnóstica num país maioritariamente pseudo-cristão - e ele mostra-se mais interessado no cristianismo do que no agnosticismo.

Certo dia enfurece-se ao telefone enquanto fala com a mulher. Ele conta-me que o presidente/rei do Senegal está a tentar mudar a constituição para se poder reeleger após ter cumprido todos os mandatos permitidos constitucionalmente. Fala-me do presidente/rei do país dele com alguma raiva e medo - teme uma guerra civil e arrepende-se de não ter emigrado para Inglaterra. Ele até queria, mas a mulher não estava para aí virada.

Penso no meu próprio país, e nos tiranetes que por cá temos que também mudam constituições com fins eleitoralistas. Penso no que faria se o meu país fosse pelo caminho que ele descreve e constato
que independentemente da língua, religião, cor da pele ou continente onde vivemos, todos temos os mesmos medos e desejos.

No final, mais do que as sessões que assisti ou do tempo que passei com os meus amigos e colegas, lembro-me com algum prazer das conversas que tive com ele. Gostei tanto da experiência que tenciono passar a não escolher o meu companheiro de quarto nos eventos futuros. Só espero continuar a ter sorte com os próximos sorteios.





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