Monday, June 25, 2007

O sarau de piano

Sábado às seis da tarde. Lá fora o sol brilha, a convidar mais a passeios na rua do que a actividades de interior.
Passeio os olhos pela sala desta pessoa que mal conheço. A figura dominante ocupa quase metade do espaço total: um enorme piano de cauda - um piano de concerto, preto, aberto, à espera. Está assente em esferovite, e por baixo dele estão um monte de almofadas, um cobertor e um grosso tapete - tudo em nome da paz e harmonia entre vizinhos.

Ao fundo vejo uma grande estante repleta de livros. Dá para ver à distância que a estante está bem organizada - as prateleiras de cima consistem sobretudo de enciclopédias e livros de consulta, enquanto que mais abaixo estão os romances e literatura de ficção - o prazer bem separado do trabalho. As prateleiras de cima têm bastantes mais molduras com fotos várias a impedir o fácil acesso aos livros - o que me faz pensar que os livros de baixo têm bastante mais rotação e uso e são porventura considerados mais importantes - ou simplesmente as molduras vêm-se melhor nas prateleiras de cima. Em geral as lombadas estão alinhadas e nota-se que existe uma organização temática - mas no meio da ordem existem alguns fora do sítio, apontando para uma utilização despreocupada e corriqueira de quem tem livros para os ler e usar - e não para os exibir.

Ao lado dos livros está a estante dos CD's. Durante a conversa surge uma estimativa - mais de mil - para o número de cd's que ali estão. Estão meticulosamente organizados e (segundo o que me dizem) cuidadosamente catalogados - vê-se que foi algo que foi coleccionado com muito carinho e que é alvo de algum orgulho.

Nas paredes existem alguns quadros - nem muitos nem poucos: a conta certa. Um campo de milho impressionista (possivelmente um van gogh, mas não assinado, o que para mim não é costume nos seus quadros) ocupa a posição central enquanto que alguns quadros de pintores menos conhecidos (todos alusivos à música) ocupam os espaços menos importantes. A sala transpira (na minha opinião) a bom gosto, cuidado e erudição.


Estamos uns 12 na sala. Metade veio para ouvir, a outra metade para tocar. A diferença entre uns e outros é puramente temporal: uns são alunos do dono da casa, os outros já foram (ou são acompanhantes, como é o meu caso). Enquanto esperamos pelos mais atrasados, observo o professor enquanto tenta ambientar as pessoas em sua casa, simultaneamente acalmando os seus alunos e entretendo os convidados. Nota-se que não tem muito jeito para estas coisas - mesmo assim a sua disposição alegre e despreocupada consegue arrancar alguns sorrisos nervosos dos pianistas que tremem de tensão, e alguns sorrisos irónicos de quem sabe que não está lá para prestar provas e percebe o que custa tocar para uma audiência desconhecida.

Quando os últimos retardatários chegam, está na hora de começar a música. Como ninguém se voluntaria, o professor acaba por escolher a ordem das exibições - não por acaso, há-que dizer: primeiro os mais novos, depois os mais experientes num crescendo de complexidade e dificuldade técnica das peças. O professor distribui algumas partituras ao público, para quem (como eu) gosta de ouvir música com legendas.
A certa altura tenho mesmo a oportunidade de seguir a música na pauta da própria intérprete. Dá-me sempre um prazer voyeurista olhar para as pautas usadas pelos músicos - normalmente os erros, dificuldades, passagens mais complicadas estão marcadas nas pautas a lápis pelo próprio. É algo quase íntimo, que por vezes permite perceber toda a relação entre o músico e a música.
Durante o concerto tenho oportunidade de ouvir músicas conhecidas - algumas ainda toco hoje, outras fazem-me andar vários anos para trás no tempo. Identifico os pontos em que tenho (ou tinha) mais dificuldades e comparo-os com as dificuldades que encontro no intérprete. Comparo estilos, ideias e opiniões com a pessoa que toca, enquanto que mudo corrijo os meus erros e me delicio a perceber a diversidade de maneiras que existem de tocar a mesma nota.

Depois da música, segue-se um pequeno jantar com confraternização e troca de ideias. Temos ainda direito a assistir à escolha de alguns filmes que o professor preparou, de forma a desvendar um pouco mais aquilo que ele considera ser o mundo da música, o que é importante ou não, o que é que pode ser boa ou má música.



Acho simplesmente brilhante esta ideia de juntar o passado e o presente/futuro numa só sala. No final toda a gente sai a ganhar: os alunos têm a oportunidade de testar os nervos perante uma audiência conhecedora mas desconhecida, enquanto que os ouvintes se conseguem manter em contacto com o mundo da música do qual já fizeram parte há alguns anos atrás, mas que lentamente foram abandonando. Curiosamente, aquele que tem menos a ganhar até é a pessoa que oferece a casa, o tempo, o piano e o seu trabalho para estas pequenas reuniões. Considero estes encontros um verdadeiro acto de dar - tive alguns bons professores de piano no tempo em que estudei, mas nunca vi nenhum que se dedicasse desta forma aos seus alunos e à sua arte. No final foi uma tarde que valeu não só pelo prazer de ver e aprender algo sobre música, mas também para ver e aprender algo sobre ser Professor.

Friday, June 22, 2007

A minha (falta de) ambição

Recentemente aconteceram uma série de alterações na estrutura da empresa onde eu trabalho. Como seria de esperar, houve uma grande dança das cadeiras, com a inevitável febre para se perceber quem é que ia para onde. Como em todas as grandes reorganizações, houve pessoas que subiram de poleiro, outras que desceram (pelo menos em termos comparativos), outras que ficaram exactamente na mesma e finalmente aquelas que ninguém percebeu se subiram ou se desceram (nem elas próprias).

O que acho interessante nisto tudo é a forma como as pessoas reagem, e a comparação que faço com a minha própria reacção.

Bem - eu já escrevi aqui há algum tempo atrás sobre a ambição dos outros e sobre os meus objectivos pessoais. De forma a não me repetir aqui - e porque penso que no fundo esta situação está relacionada essencialmente com ambição e objectivos pessoais - desta vez vou escrever da minha (falta de) ambição.

Confesso que por vezes me preocupa aperceber-me que a minha ambição em termos de carreira parece ser um pouco ..... diminuta..... quando comparada com a maior parte das pessoas com quem trabalho. Nestas alturas fico a pensar se não haverá nada de errado comigo - será que a falta de ambição não pode vir a ser um problema? Será que é um comportamento normal, ou devo considerar doentio? Será que devia tentar mudar?

Realmente, quando penso nisso consigo imaginar-me daqui a alguns anos ainda a gostar do que faço hoje (o que me parece bom). Em simultâneo imagino-me como aquela pessoa mais velha que foi ficando no mesmo sítio porque nunca teve vontade de mudar, enquanto todos os outros seguiram em frente - o que já não me parece tão positivo.

(Este último parágrafo fez-me lembrar da seguinte história da minha infância:

Eu entrei para a pré-primária um ano mais cedo. Fui fazendo uma série de amigos durante o tempo que lá passei, até que no início do ano escolar em que eu tinha 5 anos cheguei à escola e apercebi-me que a maior parte dos meus melhores amigos não estavam lá. Eles eram um ano mais velhos e portanto tinham passado para a primeira classe, que era noutra zona do edifício - enquanto que eu era suposto ficar no mesmo sítio por mais um ano.

O recreio da pré-primária era paredes meias com o recreio da primária, separado por uma grade - e eu lembro-me perfeitamente de nesse dia estar agarrado à grade a olhar tristemente para o recreio da primária onde estavam os meus amigos todos, a pensar que aquilo não estava certo. Segundo reza a história (confesso que não me lembro bem desta parte), quando voltei do recreio peguei nas minhas coisas e caminhei com segurança e de livre vontade para a zona da escola onde eram dadas as aulas da primeira classe. Entrei pela sala de aula dentro, sentei-me e anunciei em voz alta para toda a gente ouvir que ficava ali - o que acabou por acontecer.

)

Esta história - e as conversas que tenho com pessoas mais ambiciosas que eu - fazem-me pensar que por vezes faço coisas por razões que de alguma forma parecem ser diferentes das razões que motivam as outras pessoas - o que inevitavelmente me leva a pensar se estarei errado, ou a ajuizar mal alguma coisa. Será que daqui a 10 ou 20 anos me vou arrepender de não me ter preocupado mais com a minha carreira? Será que estou a ser imediatista? Ou pouco responsável? Ou (ainda pior) desinteressado?

Por outro lado, parece-me notar em mim em algumas situações uma serenidade e despreocupação que acho que não teria se estivesse preocupado com ambições de futuro ou de carreira. É um facto que sinto que consigo apreciar o trabalho que faço hoje em dia de uma forma mais salutar do que se pensasse que o que faço agora é apenas um degrau para chegar a algum outro lado.

A minha conclusão é a de que sou uma pessoa que não tenta olhar demasiadamente longe no horizonte para saber para onde vai - vou-me preocupando em dar um passo de cada vez e (tentar) ver bem onde é que tenho os pés. Isto ajuda-me a não tropeçar e a aproveitar melhor a viagem, mas pode-me levar para becos sem saída. Suponho que estou simplesmente demasiado entretido com a caminhada para me preocupar com a direcção - algo que se calhar não é muito adulto nem responsável, mas que me permite maximizar o gozo que tiro do dia-a-dia. Não sei se isto faz de mim uma pessoa infantil ou irresponsável - acho que mesmo que faça, não quero saber.

Já agora, é curioso pensar nas consequências de uma decisão destas: se eu não tivesse decidido ir um ano mais cedo para a primeira classe, não teria conhecido NENHUM dos meus amigos da primária, secundária e universidade - e posso dizer que houveram pessoas que me influenciaram mesmo MUITO. É assombroso pensar o quanto a minha vida actual seria diferente se eu não tivesse tomado aquela decisão naquele dia... E tudo porque os recreios eram separados!

Monday, June 18, 2007

Porque é que eu quis pintar a minha casa?

As pessoas que me conhecem melhor provavelmente estranharão o facto de eu ter querido pintar a minha casa. É algo que eu não gosto de fazer - nunca gostei nem tive muito jeito para trabalhos manuais. Quando morava com a minha mãe e haviam obras, fugia delas tão depressa e para tão longe quanto possível (as más línguas dirão que a última vez que a minha casa foi pintada eu fugi para o Nepal).
Provavelmente pensarão que não foi uma decisão só minha - e têm razão - mas a realidade é que o meu voto foi precisamente no sentido de não pagar a alguém para o fazer por mim.

Quando fui viver sozinho, optei propositadamente por passar alguns meses sem empregada, de forma a poder aprender e melhor apreciar o quanto custa fazer as coisas nós próprias - quanto trabalho dá limpar, lavar, tomar conta de uma casa. Hoje acho que fiz bem em escolher fazê-lo e aconselharia a qualquer outro na mesma situação.
Desta vez foi algo de semelhante - eu quis participar de alguma forma no processo de "criação" da casa para onde tenciono ir morar durante algum tempo. É uma forma de valorizar o trabalho ali investido e de me sentir parte (e merecedor) da própria casa. Acho importante que as pessoas se envolvam desta forma nas coisas que fazem parte das suas vidas - mesmo que apenas simbolicamente. Acho que acabamos por valorizar e dar mais atenção ao que nos rodeia quando participamos na sua criação com o nosso suor e não apenas com o dinheiro.

Da mesma forma aceitei a ajuda que alguns amigos ofereceram. Como não gosto da tarefa - acho que é algo que dá trabalho, é sujo e desconfortável e muitas pessoas não gostam de fazer - tentei não pedir explicitamente a ajuda de ninguém, mas antes aceitar alegremente quando ma ofereceram (houve inclusive pessoas que se ofereceram, mas que por uma razão ou outra - normalmente logística - acabei por não poder aceitar). Sempre admirei aqueles filmes em que a comunidade se junta espontaneamente para ajudar um membro a desempenhar uma tarefa - acho que é um acto de oferta com muito valor.
Reciprocamente gosto quando os meus amigos me pedem esse tipo de ajuda. Sinto-me elogiado por me considerarem próximo o suficiente para que estejam à vontade para me pedir ajuda. Ainda mais valor atribuí quando uma das pessoas me confessou (não para minha surpresa) que não teria pintado a casa dele, mas que me ajudou a pintar a minha.

No final fiquei satisfeito com o resultado e mais uma vez - apesar de andar com dores pelo corpo, cansado, e ter gasto mais de dois fins de semana com esta tarefa - não acho que me venha a arrepender de ter votado para que fosse desta maneira.

Tocar às duas da manhã

Duas e tal da manhã, a casa toda às escuras.

Na rua também está tudo calmo: não há carros a passar, pessoas a falar nem cães a ladrar - parece que estou sozinho no mundo!

A luz é insuficiente para ver o que faço - apenas consigo aperceber-me de uma zona mais clara, como se fosse um grande sorriso branco dirigido a mim. Pouso as mãos em cima do branco. Os dedos tacteiam à procura do acorde inicial - arrastam-se lentamente, a acariciar as teclas negras e a empurrar suavemente as brancas, enquanto tento perceber o que me apetece tocar. Música clássica, contemporânea, improvisos - a esta hora tanto faz.

Como em tantas outras coisas, é apenas necessário um pequeno empurrão inicial - um piparote - para que a coisa comece a andar e ganhe uma vida própria. Frequentemente as mãos encontram o sítio certo antes da mente e começam a tocar sozinhas. É neste momento que deixo a música fluir - deixo a janela da alma abrir-se e começo a espreitar lá para dentro, num misto de curiosidade racional e de sentimento irracional - os dois hemisférios do cérebro a trabalhar em absoluta harmonia, de uma forma que não consigo fazer em mais altura nenhuma.

Começo a pensar nas pessoas, nos amigos, nos sítios por onde tenho andado - na vida. Revejo conversas, retomo discussões interrompidas, ressinto-me, deleito-me, indigno-me, arrependo-me e orgulho-me - rio e choro. Passo por uma mistura única de pensar e sentir, embalada pela música que sai do piano e de mim e que parece ter enchido o mundo que ainda agora parecia estar vazio. Há uns dias atrás uns amigos meus falavam-me do prazer de sentir a música num concerto ao vivo - e como explicar-lhes esta orgia de sensações, em que deixo de perceber se toco a músico que sinto, ou se sinto a música que toco? Em que em vez de me deixar arrastar pela música, arrasto-a comigo?

São estes momentos que me fazem pensar que todos aqueles anos a aprender, estudar e trabalhar valeram a pena. Poucas pessoas se apercebem o quanto valorizo estes momentos, mas o que acho mesmo curioso é o facto de (quase) ninguém saber realmente porque é que parei de estudar - suponho que seja mais uma daquelas perguntas que as pessoas se esquecem de fazer...

Thursday, June 14, 2007

Quando dois amigos lutam

Sempre fui daquelas pessoas que têm amigos muito diferentes entre si. Tanto me dava com os "geeks" (sempre tive uma certa afinidade com esse grupo) como com os "cools". Com os filhos dos professores e com os mal comportados - com os ricos e os pobres. Um dos meus melhores amigos no secundário desistiu da escola no nono ano porque os pais não tinham meios para o manter lá - outros não perdiam nenhuma festa porque podiam pagar discotecas e bares todas as noites.

Uma consequência de ter um leque de amigos tão diferentes entre si é que frequentemente eles se davam mal uns com os outros. De vez em quando via-me envolvido no meio de conflitos - por vezes autênticas guerras - entre pessoas com quem me dava bem. Suponho que já toda a gente passou por isto - possivelmente nem tem nada a ver com o facto de ter um grupo de pessoas muito diferentes, e os conflitos acontecem sempre e em qualquer parte.

O facto é que estes momentos são frequentemente desagradáveis e desnorteantes para quem vê a luta a acontecer e se sente nos dois lados: como agir, como escolher? Devo tomar posição por um dos lados? Devo manter-me neutro? Devo sequer participar? Devo tentar influenciar o resultado? Devo tentar arbitrar para ajudar a resolver, ou devo afastar-me para não me ver envolvido na confusão?

O momento em que tive mais problemas em relação a esta questão foi quando os meus pais se separaram. Nessa altura foi particularmente doloroso tentar decidir como agir e penso que foi nesta altura que formei a minha posição actual sobre o assunto.

Hoje em dia tenho um comportamento pensado para estas situações.
Normalmente tento não tomar posição, a menos que depois de ouvir os argumentos de ambos os lados considere que haja "jogo sujo" de uma das pessoas, ou um lado que claramente não tem razão. Não é fácil que isto aconteça - quase nunca alguém tem toda a razão do seu lado, e frequentemente o jogo sujo surge como resultado de uma espiral de agressividade onde é difícil atribuir culpas unilateralmente.
Tento manter-me tão envolvido quanto possível para perceber o que se passa, dando sempre a entender que não vou participar nas "hostilidades". Disponibilizo-me para participar como mediador, mas evito manobras de bastidores (que podem ser mal entendidas) que possam influenciar o resultado. Basicamente tento estar lá para ajudar, mas não fazer com que o resultado depende de mim.


Um factor que uso muito frequentemente para decidir é o seguinte: não gosto nada quando alguém me tenta forçar a tomar uma posição. A pior coisa que um amigo me pode dizer quando luta contra outro amigo meu é: "ou estás comigo, ou estás com ele". Nestas situações quase sempre vou tomar posição junto da pessoa que não me obriga a escolher um lado. Não sei até que ponto é que isto é justo, mas é uma reacção que me sai naturalmente e que não consigo (nem tento) alterar.

É algo que tenho um certo interesse em saber - como é que as outras pessoas lidam com estas situações? Têm um comportamento pré-definido como eu, ou deixam-se guiar pelos eventos? Será que eu próprio sou demasiadamente inflexível, com uma maneira de actuar demasiadamente definida?

Tuesday, June 12, 2007

Ignorance is bliss

O título do post vem do Matrix - a certa altura o cypher está a falar com o agent smith e diz-lhe que prefere mergulhar na matrix, esquecer tudo e viver uma vida de luxo e ignorância, do que estar acordado na dura realidade onde se encontra. Ele quer esquecer que o mundo é um sítio terrível e prefere viver num irreal mundo de sonho, afastado das grandes preocupações e saboreando os pequenos prazeres que sente falta.

Frequentemente a sabedoria é associada com um certo grau de indiferença face à felicidade terrena. Alguns exemplos extremos poderiam ser:
- o budismo encara o nirvana (que não é mais que um estado de esclarecimento máximo e universal) como uma fase em que não existem emoções - buda não sentiu prazer por atingir o nirvana, nem pena ou compaixão em deixar o resto da humanidade para trás.
- os filósofos e sábios são frequentemente retratados em filmes e livros como ascetas que abandonam o mundo físico para se dedicarem à sabedoria pura. Deixam de ter prazer na comida, bebida e contacto social e íntimo e deleitam-se apenas com orgasmos filosóficos.

Bem, o facto é que a maior parte da humanidade não se preocupa com o nirvana ou com orgamos filosóficos - a maior parte de nós não há-de lá chegar (pelo menos nesta vida).

Assim sendo, em termos mais terrenos as perguntas sobre as quais quero dissertar um pouco é:
Será que no mundo real do dia a dia vale a pena darmo-nos ao trabalho de tentar saber mais - mesmo que o conhecimento seja doloroso - ou é preferível ignorar e seguir alegremente em frente? Vale mais a pena ser um parvo alegre ou um interessado sisudo e infeliz? Será que os parvos são alegres e os alegres são parvos, ou podem haver pessoas simultaneamente despertas e felizes?

Existem várias situações que se calhar tornam estas perguntas mais mundanas:
- Será que eu preferia a dor de saber que o meu conjugue me é infiel, ou preferiria viver na feliz ignorância?
- Será que eu preferia a dor de saber que tenho uma doença terminal, ou preferiria viver e aproveitar os meus últimos dias na ignorância desse facto?
- Será que eu quero saber que um amigo qualquer tem problemas que eu não posso resolver, ou prefiro nem saber para não ter que pensar nisso?
- Será que eu quero saber que o aquecimento global existe, ou prefiro ignorar o problema?

Algumas pessoas hão-de achar a pergunta estranha - possivelmente outras acharão simplesmente estúpida. Eu já lhe dediquei bastante tempo e interesse - já senti o peso desta dúvida. É mais frequente aparecer quando estamos a passar fases más, uma vez que nessas fases o peso de conseguir perceber a situação se torna muito maior.

Numa "vida" anterior conheci uma pessoa que me disse algo que na altura me perturbou muito:

"Quem me dera não saber certas coisas para poder ser mais feliz - as pessoas que sabem menos são sempre mais felizes!"
Para alguém que acha que dois dos objectivos principais devem ser aprender e aproveitar a vida, esta afirmação - vinda de alguém que eu achava particularmente clarividente - perturbou-me. Na altura pensei: "será que os meus objectivos de vida são demasiado ambiciosos - que eu não posso perseguir ambos e que vou ter que escolher? Será que estou fundamentalmente errado nos meus princípios?"

Durante algum tempo reflecti sobre este assunto.
Fui analisando o meu comportamento durante as fases mais difíceis porque fui passando. Fui experimentando e avaliando, fui observando os outros e vendo como é que eles fazem.
Olhando para trás para fazer essa análise, penso poder afirmar com segurança (e com algum orgulho, confesso) que nos últimos anos tenho caminhado num sentido de despertar e aprender, e que raramente fugi a responsabilidades.

Tentei também perceber o que é que poderia ter sido diferente se tivesse evitado tomar as decisões que tomei nessas alturas - a minha análise é que as coisas teriam provavelmente corrido pior e que hoje seria provavelmente menos feliz se o tivesse feito. Se calhar na altura não teria custado tanto (certas decisões foram mesmo muito difíceis de tomar e viver), mas hoje não poderia colher os frutos dessas escolhas - alguns deles muito doces. Afinal, "o doce não é tão doce sem o amargo".

Depois desta análise e de reavaliar os meus princípios concluí que a ignorância e indeiferença traz um tipo de felicidade que não me satisfaz - para mim é como ganhar uma corrida em que somos o único participante. Ficamos com a glória da vitória, mas sem o verdadeiro prazer da competição e da conquista. Hoje em dia comparo o não querer saber a uma tentativa de voltar aos despreocupados tempos de infância - por muito que tenha gostado desses tempos, acho muito mais interessante a vida que levo hoje. Confesso que tenho reservas em confiar numa pessoa que deseja ser néscia e não se preocupa em perceber a sua própria vida (e a dos que a rodeiam) - dá-me sempre uma ideia de irresponsabilidade e/ou infantilidade - por vezes de fuga à realidade.

O que percebi é que para mim não há mesmo hipótese. Neste momento não posso escolher ser mais ignorante ou indiferente, porque mesmo que o tentasse nunca conseguiria alhear-me do facto de que estava a ignorar ALGO. Deve ser por isso que algumas pessoas recorrem a expedientes para tentar esquecer - simplesmente para diluir a dor de saberem que estão a tentar esquecer algo que não é facilmente esquecido.
Tenho ainda que confessar que por vezes opto por tentar ignorar - nomeadamente em situações que não controlo ou sobre as quais sinto não poder actuar. O exemplo mais flagrante (sobre a qual falei aqui ainda há pouco tempo) está relacionada com a mendicidade. O que é um facto é que sempre que o faço, faço-o com a consciência (e dor interior) de quem acha que está a proceder mal - o que me deixa pensativo durante bastante tempo.


Seja como for, depois destes anos todos penso que posso pelo menos responder à minha antiga dúvida:

Hoje em dia acho que É mesmo possível procurar a sabedoria e encontrar a felicidade. Pelo menos para mim tem sido - e não trocaria nunca a felicidade que sinto por me sentir desperto, pela oca alegria da indiferença e ignorância.

Monday, June 11, 2007

Com grande poder vem grande responsabilidade

A frase é do homem aranha - não me incomoda nada ter como um dos meus princípios fundamentais uma frase tirada da banda desenhada (confesso que foi das poucas coisas que gostei de ver no primeiro filme da série).
Desde que os meus pais se separaram que comecei a aperceber-me da influência que poderia ter junto de outras pessoas. Foi também a partir daí que comecei a delinear a minha forma actual de usar essa influência, bem como a perceber o porquê da importância de exercer esse poder de uma forma cuidadosa.

Hoje em dia existem essencialmente três categorias de pessoas sobre quem exerço alguma influência: a família, os amigos e os colegas de trabalho mais inexperientes. Por muito chocante que isto possa parecer, não estou preocupado em exercer influência sobre outras pessoas que não estas - sinceramente não sinto que tenha nem o direito nem o dever de o fazer - e certamente que não tenho a vontade.
Eu diria que na sociedade de hoje, a maneira mais importante e comum de exercer a influência que temos sobre outras pessoas é através das ideias e opiniões que transmitimos uns aos outros. A questão fundamental com que normalmente me debato é: até que ponto é que eu devo dar a minha opinião a outra pessoa, quando esta NÃO é explicitamente solicitada? A partir do momento em que sinto ter influência, começo a sentir que a minha opinião pode ser importante ao ponto de alterar comportamentos ou opiniões dos outros. Existem várias razões para eu não querer influenciar alguém em demasia- posso não me ter apercebido bem da situação, posso ter princípios diferentes do meu interlocutor - ou posso simplesmente estar errado. O risco é que eu esteja a dar maus conselhos - e pior, maus conselhos que têm boas probabilidades de serem ouvidos e seguidos - provavelmente o simples facto de dar um mau conselho a um amigo numa situação importante far-me-ia ter um sentimento de culpa durante muito tempo, algo com que tenho dificuldade em lidar. Existe também o risco de eu aparecer junto dos outros como alguém que tem a mania que sabe, que tem sempre que opinar ou que pensa que é superior - o que é algo que faço muita força para evitar parecer.
O reverso da medalha é que por vezes as pessoas precisam mesmo de ouvir opiniões não solicitadas, pelo que frequentemente corro o risco de não ajudar alguém que precisa. É um problema que se acontecer não me deixa com tantos remorsos, uma vez que não consigo provar a mim mesmo que fiz mal ou sequer que a minha influência teria alterado o resultado - como tantas outras coisas, o facto de eu não opinar por vezes reveste-se de uma forma de egoísmo próprio, em que acabo por não ajudar outros para não me prejudicar a mim mesmo.

Assim, normalmente quando alguém me conta algo que acho merecer a minha opinião tento fazer (ou esperar) com que essa pessoa ma peça explicitamente. Se não conseguir tento pelo menos fazer o maior número possível de perguntas antes de formar uma opinião, de forma a tentar apreender tanto quanto possível a situação para minorizar o risco de erro. Quando acabo por dar a minha opinião, tento sempre convencer as pessoas a quem a transmito (quando o assunto é importante ou sensível o suficiente) a pedirem a opinião de outras pessoas que eu ache terem o mesmo tipo de influência que eu tenho. .Pessoalmente gosto imenso de receber opiniões de pessoas que respeito, as quais considero verdadeiras "prendas" carregadas de valor. Peço frequentemente opiniões - que muitas vezes me são negadas ou "amaciadas". Valorizo particularmente as opiniões sinceras e directas (e espontâneas).
Ainda não há muito tempo uma pessoa me disse (com alguma brutalidade, há que dizê-lo) que eu estava a fazer mal o meu trabalho, o que me deixou bastante chateado comigo mesmo (e um pouco também com a outra pessoa devido à forma brutal como me foi dito). Passado o choque da surpresa, acabei por ficar agradecido por me estarem a dar a oportunidade de melhorar.

Assim, quando estou com familiares ou amigos tento nunca dar uma opinião a quente, a menos que ma peçam. Apenas depois de ter medido bem uma situação e apenas no caso de achar que posso ajudar com a minha opinião é que a dou. Nunca minto e tento não dizer meias-verdades piedosas (nem sempre consigo, mas é raro fazê-lo). Quando me pedem a opinião tento ser o mais directo possível (há quem diria "insensível") e não-político - embora nem sempre dê a minha opinião completa de forma a evitar ser demasiado "bruto". Nunca recuso ser mais sincero quando isso me é solicitado - tudo o que as pessoas têm que fazer é pedir.

O único outro grupo de pessoas a quem dou opiniões são pessoas com quem trabalho e que têm menos experiência profissional que eu. Nestes casos a dúvida fundamental também existe: até que ponto é que devo transmitir a minha opinião, recolhida e transformada por vários anos de trabalho em condições que se calhar já não são a realidade de hoje - ou segundo os meus princípios, que podem não ser partilhados pelos receptores da informação? Até que ponto é que devo influenciar os desejos, sonhos e ideias de pessoas mais inexperientes? Quem sou eu para estragar/corrigir/alterar as esperanças dos outros com as minhas reservas, medos e vícios de velho do restelo? Este É um problema que me aflige bastante. Até agora optei por fazer como faço com os meus amigos: fornecer a minha opinião apenas se solicitada, e sempre com a ressalva de que é mais válida para o meu caso do que para a outra pessoa - e sempre acompanhada do conselho de que as pessoas procurem segundas opiniões e que não levem a minha demasiado a sério. Não é por acaso que o primeiro conselho que dou a alguém que começa a trabalhar na minha equipa é: ouve as opiniões dos outros e depois forma as tuas - nunca aceites simplesmente o que te dizem, mas pensa se achas que aquilo que te dizem está correcto para ti.
Por outro lado, tenho mais facilidade em fornecer a minha opinião sobre questões mais técnicas mesmo que não solicitada: se noto que a outra pessoa aceita bem essa posição, tenho acabado por me tornar numa espécie de professor/formador - mesmo que isso ultrapasse as minhas funções oficiais. Faço-o porque gostei quando mo fizeram a mim. Faço-o também porque acredito que é algo que faz falta no sítio onde trabalho. Finalmente faço-o para tentar maximizar as probabilidades de que as pessoas que me acompanharão em trabalhos futuros estejam tão bem preparadas quanto possível, de forma a que na altura me possam ajudar a fazer o meu próprio trabalho.

Wednesday, June 6, 2007

Mendicidade - oferecer ou não oferecer? (II)

(continuação do post anterior)

No final, a decisão sobre se ofereço ou não provém de uma mistura destas quatro factores (princípios, compaixão, pragmatismo e egoísmo). Depende muito do meu estado de espírito e da forma como sou abordado. Depende sobretudo da imagem que eu faço da pessoa na altura.

Lembro-me de uma vez que fui abordado perto de uma estação de comboio por uma pessoa que me pediu 5 euros para o comboio. Era um homem adulto aparentemente são, que invocou razões de ordem contextual (tinha perdido a carteira, ou qualquer coisa do género) para não ter dinheiro para ir para casa.
Eu já estava dentro do carro a sair do estacionamento, mas mesmo assim voltei a estacionar o carro e fui com essa pessoa ao multibanco levantar dinheiro para lho dar (eu tinha apenas 20 euros na carteira, que ele não me pediu quando lho disse - e que muito provavelmente eu não ofereceria).

Fi-lo porque a história (e a postura) dele me convenceu. Porque me consegui imaginar numa situação semelhante e sobretudo porque eu tinha tempo para o fazer.
O que eu fiz foi imaginar-me no lugar dele (ou em que ele afirmava estar) e imaginei o que é que eu pensaria e diria naquela situação - e o discurso dele estava perturbadoramente perto do discurso que eu imaginei para mim próprio naqueles segundos.
No final, quando lhe dei o dinheiro ele pôs-me as duas mãos na cara e agradeceu-me.
Possivelmente a história era forjada, possivelmente dei dinheiro a um preguiçoso ou intrujão. Possivelmente corri o risco de ser assaltado pelas costas enquanto ia ao multibanco ajudar alguém que não conheço.
Tudo isto me passou pela cabeça naquela altura, mas o que me fez mover foi: "e se isto me acontecesse a mim, o que é que eu faria? O que é que eu acharia da pessoa que estivesse no meu lugar?". O que é um facto é que se fosse no dia seguinte em que eu estivesse com mais pressa ou com menos paciência possivelmente não lhe teria dado nada.

Recentemente aconteceu-me uma situação curiosa: na rua com um grupo de amigos fomos confrontados por uma pessoa que nos pediu dinheiro para uma causa (supostamente meritória e fidedigna). Na altura eu hesitei - se estivesse sozinho a minha resposta teria sido provavelmente um não. Todas as pessoas ficaram suspensas durante uns momentos, até que uma delas decidiu oferecer o dinheiro pedido - logo de seguida se gerou um movimento de grupo em que a maioria das pessoas decidiu oferecer.
Duas das pessoas decidiram não oferecer (foram mais fortes e consistentes que eu, que acabei por ceder à pressão de grupo). No final uma delas sentiu a necessidade de explicar porque é que não tinha oferecido (ou pelo menos esta foi a minha interpretação daquilo que ele disse).
Na realidade acho que qualquer das pessoas que não ofereceu acabou por agir melhor que eu. Por vezes gostaria de ter a coragem de o fazer.

Mendicidade - oferecer ou não oferecer? (I)

Sempre que alguém na rua me pede dinheiro faço uma reanálise da minha opinião sobre mendicidade (ou sobre peditórios de rua, ou qualquer outra actividade que envolva alguém que não conheço pedir-me que ofereça algo voluntariamente - quase sempre dinheiro).

Segundo os meus princípios não devo contribuir nestas situações. Para mim isto é bastante claro: acho que não devo encorajar a mendicidade - segundo aquilo que acredito qualquer pessoa tem direito a escolher o tipo de vida que quer, mas deve estar preparada para acarretar com as consequências dessa escolha. Este princípio torna muito fácil a resposta quando sou abordado por alguém que acho possuir todas as condições para poder ter um trabalho/vida normal e que OPTOU por uma vida de mendicidade ou dependência da boa vontade alheia - nomeadamente pessoas jovens e aparentemente sãs.

Mas e o que dizer de pessoas que obviamente ou aparentemente não têm condições de ganhar o seu sustento? O que fazer face a um idoso, uma criança ou um aleijado? Ou face a uma pessoa que simplesmente alega não ter outra alternativa senão depender da boa vontade alheia?

Bem - nestas situações começa a ser mais difícil aplicar fielmente os meus princípios. Se é verdade que acredito que a mendicidade nunca será a solução para o problema, o facto é que consigo imaginar um leque alargado de situações sem qualquer outra solução. Acontece que a minha filosofia é a de que uma resposta é adequada APENAS SE fornecer uma solução para o problema, pelo que por vezes os meus princípios podem não ser uma resposta adequada.

Adicionalmente existem outros factores que entram em jogo quando formo uma decisão neste tipo de situação:
- A primeira é de ordem sentimental: a compaixão. Para mim é difícil ver outro ser humano rebaixar-se ao ponto de ter que me mostrar a sua incapacidade para tentar conseguir que eu o ajude. É-me penoso ouvir histórias de miséria e frequentemente não consigo pensar que a história pode ser simplesmente inventada. Por outro lado faz-me impressão a indiferença social que cada vez noto mais a pairar no tipo de sociedade em que vivemos e tenho sérias dificuldades em não ajudar alguém que me pede directamente ajuda.

- A segunda é de ordem prática: a realidade é que é muitíssimo provável que o que me pedem para oferecer tenha muito mais valor para quem recebe do que para mim. Se calhar para uma pessoa na minha posição 1, 2 ou 5 euros são na prática insignificantes, enquanto que para alguém que se vê obrigado (ou que escolhe) pedir na rua pode ser a diferença entre uma refeição ou a inanição (embora por outro lado o dinheiro possa ser usado para causas bem menos nobres).

- Existe ainda um terceiro factor que me custa bastante mais a confessar: o egoísmo. Por vezes acabo por oferecer não tanto por questões de princípio, sentimentais ou práticas - mas antes porque simplesmente quero afastar a pessoa de mim. Por vezes estou simplesmente com pressa, estou cansado ou não quero aturar a outra pessoa e a solução mais rápida é simplesmente "pagar para não me chatear".
Acho que esta é a pior razão que pode existir para fazer uma oferta. Em primeiro lugar mostra uma certa falta de humanidade da minha parte - eu simplesmente nem quero saber, quero apenas que a pessoa me largue e se vá embora, o que é contrário ao princípio da caridade.
Em segundo lugar (e ainda mais importante) porque acaba por "favorecer" as pessoas que são simplesmente insistentes ou chatas enquanto que "prejudica" aquelas que são mais reservadas ou que até se esforçam por me incomodar menos. Em relação aos meus princípios, acabo por estar a "premiar" a pessoa que tem menos mérito e a "prejudicar" a que apresenta um comportamento mais meritório.
Por último, como já disse noutro post considero que o "pagar para não me chatear" é algo intrinsecamente negativo e anti-social, que devo corrigir na minha actuação.

A verdade é que já o fiz - e sempre que noto que isso acontece fico muito irritado comigo mesmo (o que não me tem impedido de cair de novo no mesmo erro).

(continua no próximo post)

Os cheiros

Tenho uma certa facilidade em dividir a minha vida em fases mais ou menos distintas. As diferenças na minha maneira de ser entre essas fases são suficientes para que normalmente lhes chame simplesmente de "vidas", de forma a salientar a importância da transicção.

Uma das alterações que me faz mais confusão de relacionar entre diferentes "vidas" é a minha relação com os cheiros.
Numa "vida" anterior tive uma namorada que me dizia frequentemente que eu tinha anósmia - que é como quem diz, não conseguia identificar cheiros. Olhando para trás realmente tenho que lhe dar alguma (não toda) razão - embora na realidade a minha principal dificuldade fosse em distinguir a marca do perfume que ela usava (o que por vezes me causava ligeiros dissabores, visto que era uma coisa a que ela dava muita importância).

Hoje em dia dou por mim a dar uma grande importância aos cheiros que me rodeiam. Apesar de ainda não conseguir distinguir a marca dos perfumes que passam por mim no dia-a-dia o facto é que noto muito mais os cheiros - e que uso conscientemente essa informação para tirar conclusões.
Sei também quais são os cheiros que gosto ou não gosto particularmente: por exemplo não gosto de cheiro a tabaco, café ou chocolate (por estranho que possa parecer) e delicio-me com cheiro a laranja, a flores e polen (ao qual sou infelizmente alérgico) - recentemente o cheiro das tílias e das jacarandas do bairro alto quase que me fez querer dormir na rua. Se não fosse a minha alergia acho que me dedicaria rotineiramente a orgias olfactivas (frequentemente mudo o meu caminho apenas para poder passar por um sítio que cheire a pólen).

Existem também alguns cheiros que têm um significado especial para mim. Alguns cheiros fazem-me lembrar algumas pessoas, outros fazem-me lembrar sítios onde estive. É frequente um cheiro activar memórias antigas, o que me leva normalmente a uma certa nostalgia.

Um conjunto de cheiros que me lembro particularmente bem são os cheiros de quando jogava hoquei. Lembro-me perfeitamente que no princípio dos treinos o pavilhão cheirava a cera - e se os treinos fossem de dia o cheiro era particularmente forte por causa do calor e do sol que entravam pelas janelas do pavilhão. Quando começávamos a patinar o som dos rolamentos começava a ecoar pelo pavilhão deserto e começava a sentir-se o cheiro a óleo e massa consistente das rodas. Quando o treino já ia avançado começava a cheirar a borracha queimada das travagens e mudanças de direcção, e as luvas começavam a cheirar a suor. Depois do treino era o cheiro das toalhas molhadas do duche, o cheiro (muito característico - e não, não era cholé) das botas dos patins e o cheiro a suor de todo o equipamento que estava em contacto com o corpo.
É engraçado que por exemplo o squash não tem cheiro - é inodoro, asséptico - a única excepção é a bola, que frequentemente cheira a borracha aquecida (mas apenas se a puser perto do nariz, um sítio onde é esperado que a bola não passe muito tempo num jogo civilizado).
No ténis de mesa o cheiro predominante é o cheiro da cola da raquete, mas que normalmente se perde um bocado quando o recinto de jogo é muito grande.

Apesar de dar esta importância aos cheiros e de frequentemente ser capaz de identificar uma pessoa pelo cheiro, hoje em dia não costumo usar perfume. Limito-me a usar desodorizante (não suporto cheirar mal - é algo que me faz ir a correr envergonhado para casa tomar um duche). Não sei porque é que deixei de usar, mas o facto é que durante esta última "vida" ofereci-os todos...

As jacarandas do bairro alto

Recentemente fui jantar ao bairro alto. Ao contrário do que costuma acontecer tive a felicidade de chegar lá ainda de dia e o que vi surpreendeu-me.


Depois de tantos anos a frequentar esporadicamente o bairro alto (há que dizer que não é um dos meus sítios preferidos) só agora é que descobri que desde o rato, passando pelo príncipe real até ao largo do carmo existem uma série de árvores que acho francamente belas - nomeadamente Jacarandas.

Há que dizer que a Jacaranda foi uma árvore que me fascinou numa viagem que fiz a áfrica. É uma árvore que tem umas flores violeta, que em certas alturas do ano caem aos magotes. Estas flores são pesadas o suficiente para não serem facilmente levadas pelo vento, pelo que ficam espalhadas no chão à volta da árvore - são também em quantidade suficiente para formarem um tapete circular quase perfeito à volta do tronco e a sua cor é tão forte que normalmente sobressai facilmente face ao solo. O contraste entre o chão violeta e os ramos semi-despidos ainda com braçadas violetas fazem com que dê uma cor vibrante a toda a área em que se encontram.


Fiquei tão contente pela minha descoberta que decidi dar um passeio pelo bairro alto a seguir ao jantar. Infelizmente já andavam a lavar a rua, e por isso já se viam menos folhas no chão - seja como for os carros estacionados debaixo das árvores ainda estavam carregados de flores e ainda se viam vestígios pelos passeios a provar que as flores lá tinham estado - a falta de luz também fez o efeito esmorecer um pouco (tenho que lá voltar de dia).

Entretanto passeei um pouco pelo jardim do príncipe real. Fiquei simultaneamente contente ao aperceber-me que o jardim tem uma série de árvores exóticas (ou pelo menos não nativas) impressionantes, e triste por perceber que de todas as vezes que tinha passado por lá nunca realmente tinha olhado com atenção para o que lá havia.

Sempre que isto me acontece fico a pensar na quantidade de coisas importantes e/ou interessantes que me escapam no dia-a-dia e como devo ser cego em algumas situações - é normalmente suficiente para uma forte e surda auto-reprimenda, mas o que é um facto é que por vezes parece que simplesmente não tenho tempo para olhar e apreender o que se passa à minha volta (o que vai claramente contra alguns dos meus princípios de vida mais fundamentais).


A surpresa maior foi o largo do carmo. De repente vi o largo como nunca tinha visto - completamente populado de tílias e jacarandas que só me pareciam terem nascido e crescido desde a última vez que lá fui - como é que é possível que nunca me tivesse apercebido? O chão e as mesas das esplanadas estavam completamente sarapintadas de violeta e havia um cheiro inebriante no ar... Nem me apetecia sair de lá! Os restantes traseuntes deviam estar a estranhar ver à 1h30m da manhã uma figura a deambular sem direcção a olhar para o ar e a cheirar - por outro lado é o bairro alto, pelo que provavelmente acharam que eu era apenas mais um excêntrico.


Outra coisa curiosa foi a reacção das pessoas que estavam comigo quando disse que ia passear só para olhar para as árvores. Suponho que os meus amigos não estavam a imaginar-me a caminhar pelo bairro alto depois da meia noite só para ver e cheirar árvores... Pelos vistos nunca me viram a escolher o caminho mais bonito (em vez do mais rápido) para ir para o emprego - ou se calhar nunca pensaram que por vezes faço mil quilometros só para poder ver o Gerês durante um fim de semana.

Acho que não fui muito bem sucedido na minha tentativa de lhes explicar as minhas motivações. Pode ser que este post ajude...

Monday, June 4, 2007

Quanto é que vale um bom padeiro

Acredito que existem sempre várias maneiras de resolver qualquer problema. Acredito também que raramente é possível identificar uma maneira como sendo a melhor em qualquer situação - para mim a panaceia universal não existe.

Dito isto, tenho também que acrescentar que acredito que cada pessoa tem uma maneira ligeiramente diferente de resolver cada problema de todas as outras pessoas - e que são as pequeníssimas diferenças na forma de resolver cada situação que se nos deparam que nos tornam a todos MUITO diferentes e que fazem com que algumas situações fiquem muito melhor resolvidas que outras. É por isso que não costumo recorrer a uma só pessoa para resolver todos os meus problemas (bem, a não ser talvez a minha mãe :)), mas normalmente procuro a pessoa indicada para cada situação.

Isto acontece quando eu quero resolver um problema - mas e em relação à maneira como avalio os outros?

Bem, na minha avaliação das pessoas não ligo muito à IMPORTÂNCIA do problema a ser resolvido, mas sim à FORMA como o problema é resolvido - para mim isso é o que separa os que valem dos que não valem, os que sabem dos que não sabem, os que merecem dos que não merecem. Pelo contrário, frequentemente a minha apreciação é inversamente proporcional à importância do problema resolvido, porque a dedicação e capacidade de desempenhar bem uma tarefa considerada menor pelos outros é algo que mostra capacidade e (sobretudo) carácter acima da média - confesso que ainda dou valor ao antiquado "pobre mas honrado". Não sei se algumas pessoas me verão como um pragmático que apenas quer saber do resultado - nada poderia estar mais errado. A mim não me interessa tanto ganhar, como saber como é que a vitória foi conseguida. Normalmente gosto mais do prazer da luta do que da doçura da vitória.

Certa vez trabalhei num local onde havia uma grande cantina. Só haviam duas caixas para pagar e frequentemente haviam filas grandes. Lembro-me bem de uma das pessoas que de vez em quando trabalhava naquelas caixas a receber o pagamento. Eu ficava sempre hipnotizado a vê-la trabalhar, tal era a sua eficácia - parecia que cada gesto tinha sido pré-calculado para minimizar o esforço e maximizar o rendimento. A fila dela podia ter o dobro das pessoas que eu escolheria sempre aquela caixa - porque sabia que as minhas probabilidades de sair dali mais depressa eram bastante maiores naquela caixa. Sinceramente cheguei a lamentar o facto de em termos de sociedade não haver o hábito de dar gorjeta a pessoas que recebem o pagamento na caixa. Confesso que também nunca a elogiei directamente porque sempre achei que isso poderia ser mal interpretado. O que é um facto é que aquela pessoa mostrava uma eficiência tal que ainda hoje me lembro bem dela e da forma como trabalhava - isto numa posição que é considerada pela sociedade como de importância secundária.


Um destes dias ouvi (li) um amigo meu a estranhar terem-lhe dito que até como padeiro se sairia bem. Pareceu-me que ele não atribuiu o valor devido a um elogio desses. Pois eu responder-lhe-ia: que grande elogio que te deram!