Sábado às seis da tarde. Lá fora o sol brilha, a convidar mais a passeios na rua do que a actividades de interior.
Passeio os olhos pela sala desta pessoa que mal conheço. A figura dominante ocupa quase metade do espaço total: um enorme piano de cauda - um piano de concerto, preto, aberto, à espera. Está assente em esferovite, e por baixo dele estão um monte de almofadas, um cobertor e um grosso tapete - tudo em nome da paz e harmonia entre vizinhos.
Ao fundo vejo uma grande estante repleta de livros. Dá para ver à distância que a estante está bem organizada - as prateleiras de cima consistem sobretudo de enciclopédias e livros de consulta, enquanto que mais abaixo estão os romances e literatura de ficção - o prazer bem separado do trabalho. As prateleiras de cima têm bastantes mais molduras com fotos várias a impedir o fácil acesso aos livros - o que me faz pensar que os livros de baixo têm bastante mais rotação e uso e são porventura considerados mais importantes - ou simplesmente as molduras vêm-se melhor nas prateleiras de cima. Em geral as lombadas estão alinhadas e nota-se que existe uma organização temática - mas no meio da ordem existem alguns fora do sítio, apontando para uma utilização despreocupada e corriqueira de quem tem livros para os ler e usar - e não para os exibir.
Ao lado dos livros está a estante dos CD's. Durante a conversa surge uma estimativa - mais de mil - para o número de cd's que ali estão. Estão meticulosamente organizados e (segundo o que me dizem) cuidadosamente catalogados - vê-se que foi algo que foi coleccionado com muito carinho e que é alvo de algum orgulho.
Nas paredes existem alguns quadros - nem muitos nem poucos: a conta certa. Um campo de milho impressionista (possivelmente um van gogh, mas não assinado, o que para mim não é costume nos seus quadros) ocupa a posição central enquanto que alguns quadros de pintores menos conhecidos (todos alusivos à música) ocupam os espaços menos importantes. A sala transpira (na minha opinião) a bom gosto, cuidado e erudição.
Estamos uns 12 na sala. Metade veio para ouvir, a outra metade para tocar. A diferença entre uns e outros é puramente temporal: uns são alunos do dono da casa, os outros já foram (ou são acompanhantes, como é o meu caso). Enquanto esperamos pelos mais atrasados, observo o professor enquanto tenta ambientar as pessoas em sua casa, simultaneamente acalmando os seus alunos e entretendo os convidados. Nota-se que não tem muito jeito para estas coisas - mesmo assim a sua disposição alegre e despreocupada consegue arrancar alguns sorrisos nervosos dos pianistas que tremem de tensão, e alguns sorrisos irónicos de quem sabe que não está lá para prestar provas e percebe o que custa tocar para uma audiência desconhecida.
Quando os últimos retardatários chegam, está na hora de começar a música. Como ninguém se voluntaria, o professor acaba por escolher a ordem das exibições - não por acaso, há-que dizer: primeiro os mais novos, depois os mais experientes num crescendo de complexidade e dificuldade técnica das peças. O professor distribui algumas partituras ao público, para quem (como eu) gosta de ouvir música com legendas.
A certa altura tenho mesmo a oportunidade de seguir a música na pauta da própria intérprete. Dá-me sempre um prazer voyeurista olhar para as pautas usadas pelos músicos - normalmente os erros, dificuldades, passagens mais complicadas estão marcadas nas pautas a lápis pelo próprio. É algo quase íntimo, que por vezes permite perceber toda a relação entre o músico e a música.
Durante o concerto tenho oportunidade de ouvir músicas conhecidas - algumas ainda toco hoje, outras fazem-me andar vários anos para trás no tempo. Identifico os pontos em que tenho (ou tinha) mais dificuldades e comparo-os com as dificuldades que encontro no intérprete. Comparo estilos, ideias e opiniões com a pessoa que toca, enquanto que mudo corrijo os meus erros e me delicio a perceber a diversidade de maneiras que existem de tocar a mesma nota.
Depois da música, segue-se um pequeno jantar com confraternização e troca de ideias. Temos ainda direito a assistir à escolha de alguns filmes que o professor preparou, de forma a desvendar um pouco mais aquilo que ele considera ser o mundo da música, o que é importante ou não, o que é que pode ser boa ou má música.
Acho simplesmente brilhante esta ideia de juntar o passado e o presente/futuro numa só sala. No final toda a gente sai a ganhar: os alunos têm a oportunidade de testar os nervos perante uma audiência conhecedora mas desconhecida, enquanto que os ouvintes se conseguem manter em contacto com o mundo da música do qual já fizeram parte há alguns anos atrás, mas que lentamente foram abandonando. Curiosamente, aquele que tem menos a ganhar até é a pessoa que oferece a casa, o tempo, o piano e o seu trabalho para estas pequenas reuniões. Considero estes encontros um verdadeiro acto de dar - tive alguns bons professores de piano no tempo em que estudei, mas nunca vi nenhum que se dedicasse desta forma aos seus alunos e à sua arte. No final foi uma tarde que valeu não só pelo prazer de ver e aprender algo sobre música, mas também para ver e aprender algo sobre ser Professor.
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2 comments:
Não percebo como é que tens algo como a música que te completa tanto e tocas tão pouco... Não tenhas problemas com os teus amigos porque agora quase todos os programas de seguro de saúde incluem otorrino. :-) Agora mais a sério, não sou fã da musica dita "erudita" mas ver o prazer que tens já é motivo suficiente para gostar de te ver/ouvir tocar.. ah, e tens que acabar com aquelas bocas de baixo nível.. :-) Luis
Porque é que dizes que eu toco pouco? Ultimamente tenho tocado menos apenas porque tenho tido o piano embrulhado. Agora que as obras acabaram e que volto para casa tenciono voltar a tocar mais.
Há que haver um pouco de equilíbrio - só erudição sem um pouco de baixo nível fica um bocado sensaborão...
Miguelb
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