Duas e tal da manhã, a casa toda às escuras.
Na rua também está tudo calmo: não há carros a passar, pessoas a falar nem cães a ladrar - parece que estou sozinho no mundo!
A luz é insuficiente para ver o que faço - apenas consigo aperceber-me de uma zona mais clara, como se fosse um grande sorriso branco dirigido a mim. Pouso as mãos em cima do branco. Os dedos tacteiam à procura do acorde inicial - arrastam-se lentamente, a acariciar as teclas negras e a empurrar suavemente as brancas, enquanto tento perceber o que me apetece tocar. Música clássica, contemporânea, improvisos - a esta hora tanto faz.
Como em tantas outras coisas, é apenas necessário um pequeno empurrão inicial - um piparote - para que a coisa comece a andar e ganhe uma vida própria. Frequentemente as mãos encontram o sítio certo antes da mente e começam a tocar sozinhas. É neste momento que deixo a música fluir - deixo a janela da alma abrir-se e começo a espreitar lá para dentro, num misto de curiosidade racional e de sentimento irracional - os dois hemisférios do cérebro a trabalhar em absoluta harmonia, de uma forma que não consigo fazer em mais altura nenhuma.
Começo a pensar nas pessoas, nos amigos, nos sítios por onde tenho andado - na vida. Revejo conversas, retomo discussões interrompidas, ressinto-me, deleito-me, indigno-me, arrependo-me e orgulho-me - rio e choro. Passo por uma mistura única de pensar e sentir, embalada pela música que sai do piano e de mim e que parece ter enchido o mundo que ainda agora parecia estar vazio. Há uns dias atrás uns amigos meus falavam-me do prazer de sentir a música num concerto ao vivo - e como explicar-lhes esta orgia de sensações, em que deixo de perceber se toco a músico que sinto, ou se sinto a música que toco? Em que em vez de me deixar arrastar pela música, arrasto-a comigo?
São estes momentos que me fazem pensar que todos aqueles anos a aprender, estudar e trabalhar valeram a pena. Poucas pessoas se apercebem o quanto valorizo estes momentos, mas o que acho mesmo curioso é o facto de (quase) ninguém saber realmente porque é que parei de estudar - suponho que seja mais uma daquelas perguntas que as pessoas se esquecem de fazer...
3 comments:
Porque é que paraste de estudar, Miguel? :)
Mas que boa pergunta sónia, como é que te lembraste de a fazer?
Pergunta-me outra vez quando estivermos num sítio menos público, que eu respondo-te.
Miguelb
É das sensações que mais saudades tenho... difícil de explicar e difícil de ter com outra actividade.
boscks
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