Tuesday, December 4, 2007

Funcionalismo público - uma fotografia

Hoje tive que ir pagar uma inspecção ao elevador do meu prédio (haveria tanto para escrever sobre esse assunto...).

Depois de receber a carta da companhia de elevadores com os dados sobre a inspecção e o elevador, dirigi-me à junta de freguesia.

Achei que o natural seria pagar na tesouraria - dirigi-me primeiro para lá. Atrás do guichet estava uma senhora que me explicou que não era ali, que eu deveria ir à recepção para resolver o meu problema.A recepção é mesmo ao lado da tesouraria, ao fundo do pequeno corredor que dá directamente para a porta da rua. A recepcionista estava ocupada a atender outra pessoa, pelo que me disse para esperar. Quando tentei esperar no corredor disse-me para não esperar ali, uma vez que a porta automática ficava sempre a abrir e ela "ainda congelava", pelo que fui para dentro de uma outra sala, onde estava uma fila de umas 5 pessoas para serem atendidas em dois guichets, sendo que num deles estava um empregado muito entretido a ler o jornal. Entretanto, quando entrei na sala para esperar, a senhora da tesouraria começou a dizer-me que não era ali, que era na recepção - foi a única vez que a vi realmente a mexer-se. O único problema era que daquela sala eu não via a senhora da recepção, nem ela me via a mim, pelo que eu não sabia quando é que deveria dirigir-me lá de novo.
Bem, depois de o cliente anterior se despachar e eu adivinhar que era a minha vez, sentei-me à frente da senhora da recepção. Ela inteirou-se do meu problema e perguntou-me se eu já tinha ido à terouraria. Quando eu disse que sim, ela foi comigo até à mesma tesouraria onde eu tinha estado, onde após questionada a senhora com quem eu já tinha falado lhe disse que eu teria que ir a outra repartição num edifício perto. Infelizmente eu estava com pressa e por isso não tive tempo para perguntar porque é que ela não me tinha explicado aquilo logo, mas suponho que seja um problema qualquer entra a tesouraria e a recepção...

Quando cheguei à segunda repartição, encontrei de novo uma recepcionista sentada numa secretária situada ao fundo do corredor que dava para a porta. Já informado da ética das recepcionistas constatei que a porta não era automática, pelo que podia esperar no corredor. Ela telefonou para alguém, que eu descobri que era a pessoa que estava na sala ao lado, que entretanto me manda entrar para resolver o problema.
Bem - isto tudo já estava a correr bastante bem, mas o acto verdadeiramente simbólico aconteceu quando me sentei: ao mesmo tempo que me sentei estendi os papéis com a informação sobre o elevador e coloquei-os mais ou menos a meio caminho entre mim e a senhora. Ela manteve as mãos apertadas uma na outra enquanto olhava para mim. Só ao fim de uns segundos percebi, e tive que pegar nos papéis e colocá-los mais perto dela até ela se dignar a apanhá-los. Escusado será dizer que fiquei revoltado com esta atitude. Enquanto ela me perguntava rispidamente e com uma voz prepotente se era a primeira inspecção (descobri depois que as primeiras inspecções dão mais trabalho, porque obrigam a criar uma ficha nova) eu avaliei as minhas opções para aquela situação, e revi as minhas ideias sobre o funcionalismo público:

Basicamente eu sou obrigado a recorrer a esta entidade para resolver o meu problema. A minha única alternativa é ficar sem elevador ou aturar esta prepotência - não posso sequer ameaçar esta pessoa que vou mudar de empresa. No final, acabo por ficar com receio até de fazer uma queixa, uma vez que corro o risco de vir a precisar desta pessoa mais tarde - e como é sabido, na administração pública as pessoas não rodam muito. Mesmo que me queixasse - mesmo que esta pessoa fizesse ainda pior do que fez (ela chegou a dizer: bem, não é por ser uma primeira inspecção que não a vamos fazer, com um ar ligeiramente jocoso!), provavelmente nunca seria despedida por fazer um mau trabalho.

A minha única vingança é pensar que ela vai ter que continuar a trabalhar e suspirar (ela estava constantemente a suspirar, como se lamentasse ainda não ser sexta feira) por trás daquela secretária durante muitos mais anos, eventualmente a aturar muitas pessoas com bem menos paciência que eu.

Sunday, November 18, 2007

Intimidas-me!

Certa vez estava a falar com uma amiga minha. Era uma amiga relativamente recente, mas com quem eu já tinha algum à vontade na altura - uma pessoa reservada e introspectiva.De repente ela vira-se, e em resposta a um dos meus célebres "porquê?" ela responde-me: "porque me intimidas- e bastante!".
Aquilo apanhou-me de surpresa - afinal, intimido as pessoas? eeeeuuuu? E ao ponto de uma pessoa reservada mo dizer na cara?

Pus-me então a pensar em diversos amigos e cheguei à conclusão que se calhar intimidava mais gente - e nunca tinha percebido! Que eu intimidava as pessoas foi algo que me surpreendeu - pensar que nunca o tinha percebido irritou-me bastante (mais uma nota negativa mental para mim próprio).

Hoje incluí esse factor na minha análise das pessoas que me rodeiam. Comecei a tentar perceber que tipo de pessoas é que eu poderei fazer isso. Não mudei o meu comportamento, mas aprendi a (tentar) perceber quando é que acontece, e a (tentar) evitar levar isso a um ponto tal que possa tornar-se desconfortável para o "intimidado". Por outro lado passei a contar com essa possibilidade no meu "arsenal" - por vezes pode ser útil intimidar alguém numa situação (embora seja uma "técnica" que eu não goste de seguir).

Fiquei contente por mo terem dito. Serviu para me pôr no lugar, de forma a que valorizasse melhor a extensão da minha ignorância sobre os outros.

Serviu também para me pôr a pensar: afinal, o que mais é que farei aos outros sem que me aperceba?

Wednesday, November 14, 2007

Aborto: Ordem dos Médicos não muda código deontológico

Ocasionalmente vejo notícias que me chocam tanto que me vejo obrigado a chatear-vos com estes posts políticos.

Esta li-a em dois sítios, com duas perspectivas ligeiramente diferentes. Uma delas está aqui:
http://dn.sapo.pt/2007/10/18/sociedade/pgr_obriga_medicos_a_mudar_codigo_ab.html

e outra aqui:
http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1310672

Basicamente (segundo a minha leitura) o ministro da saúde pediu à ordem dos médicos para mudar o código deontológico, de forma a que os médicos possam cumprir a lei e efectuar abortos em algumas condições - não só a lei resultante do último referendo, mas também a lei de 1984 que prevê a possibilidade de aborto nos casos de violação, malformações do feto e outras situações excepcionais. Acontece que o código deontológico da ordem dos médicos diz frontalmente que os médicos não podem fazer abortos e a ordem dos médicos não pretende mudar esta situação.

O que acontece é que temos uma lei que permite uma acção, mas por outro lado temos uma organização que consegue efectivamente proibir todas as pessoas que podem cumprir a lei de o fazer - anulando assim a decisão da maioria.
Apesar de todos os defeitos que a democracia tem, é num estado democrático em que vivemos. Tal como eu tive que concordar com a condenação (à luz da lei de então) de algumas ex-grávidas que tinham abortado - mesmo depois de ter votado pela despenalização no primeiro referendo - estou à espera que as pessoas que não concordem com a lei actual não a quebrem - podem não concordar, mas têm que viver com ela.

Existe um segundo ponto no meio disto que parece estar a passar um pouco mais despercebido, mas que acho bastante importante - aparentemente também a objecção de consciência por parte dos médicos está a ser posta em causa.
Aqui já sou de opinião que cada médico deve ser capaz de se recusar a fazer algo com que não concorda. A diferença é que se um médico diz que não faz, posso sempre procurar outro - enquanto que se a ordem dos médicos diz que nenhum médico pode fazer, então não há volta a dar que não passe por uma grávida ir a um país estrangeiro...

Estou curioso em ver no que é que isto vai dar. O lobby dos médicos é muito forte, mas uma verdadeira democracia não se pode tornar refém de uma minoria - o que acontece mais vezes do que seria desejável.

Monday, November 12, 2007

Medo da minha opinião?

Já não é a primeira vez que isto me acontece: alguém me convida para alguma coisa - por exemplo uma ida ao cinema ou ao teatro. No fim, o "anfitrião" pergunta-me o que é que eu achei. Quando eu respondo que gostei noto um certo (grande) alívio na pessoa.

O que eu acho estranho nesta reacção é que o facto de notar alívio em vez de alegria - parece que a pessoa estava com medo do que eu pudesse dizer.

Ainda não percebi bem este mecanismo, e se bem que por um lado gosto de sentir que a minha opinião é valorizada pelas outras pessoas, por outro preocupa-me este medo da minha opinião.

Fico sempre a pensar na quantidade de situações em que as pessoas me evitam só para não a ouvir...

Ainda ninguém me soube explicar este fenómeno - mesmo as pessoas a quem pergunto quando noto que isto acontece dão-me respostas incompletas ou pouco esclarecedoras - fico sempre a pensar que temem o que posso vir a dizer se me disserem a verdade sobre este tema...

Wednesday, November 7, 2007

Crescer é...

...perceber que a vida é feita de opções. É perceber que por vezes é preciso decidir entre os desejos e os deveres - e saber quando escolher o quê. É tomar as rédeas do nosso destino, em vez nos deixarmos enredar por ele. É o glorioso direito da liberdade e o pesado dever da responsabilidade num só embrulho.
Crescer não é abandonar os sonhos ou a infantilidade - isso é envelhecer. Também não é deixar de correr riscos ou aceitar o mundo como é - isso é acomodar. Crescer é mudar o mundo enquanto deixamos que o mundo nos mude a nós, parar de viver num mundo de sonhos para passar a sonhar no mundo em que se vive.

Sobretudo, crescer é difícil. Tem dores de parto - só que é o parturiente que também nasce. Só não morre quem nunca nasceu - e quem nunca cresceu também nunca realmente viveu.

Quanto me custou a mim crescer na altura em que tive que o fazer... e a realidade é que não o trocaria por nada!

Thursday, November 1, 2007

Relembrando velhas pautas

Hoje apeteceu-me dar uma volta pelas velhas pautas.

A certa alturo passo por um estudo de Bach que toquei pela primeira vez há uns 15 anos. Já não devo tocá-lo há vários anos, mas depois de tocar lentamente os primeiros compassos apoiado na pauta, parece que tudo volta - as mãos começam a mexer-se sozinhas - como se estivessem a seguir um ritual complexo, já definitivamente entranhado nos meandros do cérebro. Agora já não é preciso pensar - basta sentir e ouvir o que as mãos têm para contar e cantar. É como se o eu do passado estivesse a falar comigo através destas pautas.

Ele fala-me da minha vida antiga - essa, que já passou e que não voltará mais. Lembra-me de conversas que tive, do dia em que comecei a tocar aquela música, do momento exacto em que comecei a conseguir tocá-la com prazer. Lembra-me da maneira como eu corri para casa para finalmente experimentar aquela outra, enquanto tocava baixo às 2h da manhã para não acordar a família ou os vizinhos. Que bons tempos eram!
Peço-lhe (-me?) para me falar das pessoas desses dias. Ele (eu?) conta-me das pessoas que se lembra, daquela pessoa que gostava muito que eu tocasse esta música, daquela outra que chegou a ouvir-me uma vez a tocar. Por vezes esse velho e jovem conhecido, ao ouvir certa música relembra-me de pessoas que saíram da minha vida ou que já abandonaram a delas - pessoas que já não devo voltar a ver fora destas conversas. Pessoas que estão bem fechadas no cofre da memória, e em cuja fechadura esta pauta entra como uma chave. Ele lembra-me então de conversas, acções, ideias trocadas, vidas vividas e passadas. Por vezes lembra-me de pequenos pormenores que só podem estar de alguma forma escritas no meio dos rabiscos negros no papel amarelecido, porque certamente que já não me poderia lembrar deles.

Fala-me das coisas boas e más, das coisas que tenho saudades e daquelas que não sinto a falta. Dos sonhos desfeitos e dos objectivos atingidos. Relembra-me os meus ideais da altura, dos meus valores, dos meus amigos e conhecidos. Das dores que passei, dos prazeres que vivi.

Enquanto me lembro de como era penso no que sou. (re)Avalio-me - tanto na técnica das mãos como na maneira de viver. Comparo-me comigo próprio - penso em mim com 25, 20, 15 anos, sentado num outro banco a tocar num outro piano e a viver uma outra vida - mas a tocar aquelas mesmas pautas, aquelas mesmas músicas. Como tudo mudou, e como tanta coisa permanece igual! Continuo a gostar imenso desta passagem - continuo a não conseguir tocar aquele compasso como deve de ser, ainda faço os mesmos erros - mas de maneira diferente. Continuo tímido, mas já menos notam. Ainda gosto de matemática, mas já aprendi a gostar do mundo das pessoas. Ainda sou uma pessoa diferente aos olhos dos outros, mas já vivo bem com isso. Já percebi que nunca vou poder ter tudo o que quero, mas ainda bem.


Quantas histórias eu leio nestas pautas. Quantas recordações escondidas nas entrelinhas, quantas mensagens escondidas no meio das notas. É impossível lembrar-me de tudo numa só noite, tal como é não consigo escrever tudo de uma só vez. Teria que viver a minha vida toda outra vez para ter tempo de conseguir tirar toda a informação que está dentro destas caixas poeirentas, para poder sentir de novo todas as emoções entranhadas.

Como é que será que lá cabe tanta coisa dentro?

Tuesday, October 30, 2007

Chumbos por faltas vão deixar de existir

Recentemente li uma notícia interessante (http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1308806).

Aparentemente o governo quer acabar com o chumbo por faltas - alunos que faltem demais passam a fazer provas especiais para poderem recuperar o ano.
A oposição atirou-se ás paredes porque para eles isto significa que a assiduidade não é premiada, e afirmando que existe uma desresponsabilização por parte do governo - sendo que para a oposição esta medida se destina apenas a camuflar o problema do abandono dos estudos.

Comecei por pensar: "quem é que ganha com esta nova situação?". Aparentemente, os alunos que faltam muito. E quem é que falta muito? bem, suponho que sejam ou os cábulas genuínos, ou aqueles que tiveram um azar qualquer (ficaram doentes, mudaram de casa a meio do ano escolar, etc.).
E quem é que perde com esta nova situação? No pior dos casos, perdem (em comparação) os alunos assíduos, que aparentemente não ganham nada face aos cábulas, que ganham o direito de faltar desde que prestem provas de que são capazes de passar.

(decidi deixar deliberadamente o governo e a oposição fora destas listas de perdedores/ganhadores, porque sinceramente não acho que as leis devam ser feitas a pensar no ganhos ou perdas dos partidos políticos).

Assim sendo, vejo-me numa situação em que na realidade há algumas pessoas (na realidade, as mais necessitadas de ajuda) que ganham muito e muitas pessoas que perdem muito pouco (na minha opinião não perdem mesmo nada - afinal, ganham o direito de não terem que fazer uma prova adicional). No processo até existem pessoas que faltam por razões legítimas (inocentes) e que ganham muito face ao estado actual. Eventualmente algumas pessoas acham que perdemos todos por questões ideológicas - que estamos a legitimizar o abandono escolar e a impedir a avaliação contínua de funcionar, mas não sou pessoa para pôr a ideologia à frente do pragmatismo.

Na minha óptica, a escola serve para um aluno aprender. Se pelo facto de ele faltar muito o obrigarmos a prestar provas adicionais - e ele mostrar que consegue passá-las, porque é que havemos de o prejudicar? Não me parece que um cábula com falta de vontade consiga passar uma prova depois de faltar o ano inteiro, mas um aluno necessitado que até estudou apesar de não estar na escola pode muito bem consegui-lo. Mais que isso, um cábula pode ao menos arrepender-se a meio e tentar emendar a mão a tempo.

Os amigos que ficam e os amigos que vão

Por vezes confronto-me com situações em que amigos meus - pessoas chegadas ou que foram importantes durante um período da minha vida - se começam a afastar. Normalmente isto acontece por razões naturais - as pessoas transformam-se, seguem caminhos diferentes, mudam de emprego, de casa ou de namorada.

Normalmente custa-me um bocado ver isto a acontecer. Hoje em dia habituei-me a ver isto como uma parte natural da vida, e aprendi a não lutar demasiado para o evitar.

Não quer isto dizer que não tente - normalmente, quando me começo a aperceber de que isto está a acontecer, tento reaproximar-me da pessoa - começo a convidá-la para mais eventos, a enviar mais mails, a tentar apanhá-la no messenger para conversar um pouco. Muitas vezes isto não é suficiente - e sobretudo se não houver um esforço idêntico do outro lado, acabo por desistir e deixar ir.Dependendo da pessoa e do tipo de relação, por vezes acabo por ficar com um amigo que vejo menos vezes - o que significa que me continuo a esforçar por manter um contacto mínimo, mas outras acabo por dar essa pessoa como perdida e desisto de vez.

Custa - sobretudo quando são pessoas a quem dou muito valor, ou por quem tento ainda durante muito tempo ou com muita força manter o contacto sem no entanto ver um esforço idêntico, mas hoje em dia acho que é importante ser capaz de perceber que por vezes é necessário - uma relação de amizade tem que fluir nas duas direcções e por vezes é melhor uma relação naturalmente adormecida do que uma artificialmente acordada.

Monday, October 22, 2007

A força da esperança (ou da auto-ilusão)

A ciência tem histórias que a própria ciência não consegue explicar.

Em 1977 foi lançada a primeira de duas sondas muito famosas (desde então já entraram em filmes, livros e jogos de computador) - as voyager.

Estas sondas destinavam-se sobretudo a estudar os gigantes gasosos do sistema solar. Após a passagem por estes planetas, as sondas supostamente deveriam continuar a sua trajéctoria até sairem do sistema solar - e continuar então a estudar o meio interestelar, onde se presume que não exista praticamente nada.

A particularidade mais interessante (pelo menos para mim) destas sondas não são os espectómetros de ultra-violeta, ou a tecnologia utilizada para as construir. A particularidade mais interessante e que diz mais sobre a espécie que as construíu é um pequeno disco de cobre revestido a ouro que cada uma destas sondas leva consigo.
Estes discos possuem vários sons terrestres - desde o som de pássaros, o som do mar, saudações em várias línguas e ainda música clássica - tudo para o caso de algum extraterrestre eventualmente encontrar a sonda no meio dos imensos anos-luz interestelares.

O que é interessante é: porque é que este disco foi posto numa sonda cuja missão é perder-se no meio do nada inter-estelar? É preciso dizer que cada grama que vai numa destas sondas é cuidadosamente analisada e sopesada, de forma a minimizar o peso e consequentemente a energia necessária para impulsionar a nave. Para qualquer cientista digno desse nome, este disco representa sobretudo um enorme desperdício de energia e recursos. Ainda por cima para transportar informação que ninguém sabe se o eventual extra-terrestre iria compreender (gostar?) - afinal, ele poderia estar mais numa onda de jazz...

Seja como for os discos foram nas duas sondas, o que me leva a perceber que muitas vezes não fazemos as coisas que devemos, mas as que queremos - e que muitas vezes interessa mais o tentar do que o conseguir.

É interessante pensar no que nós faríamos se encontrássemos uma sonda perdida no meio do espaço enviada por outra civilização. Será que precisaríamos de um disco de ouro com sons para ficarmos interessados na descoberta?
Por outro lado será que não preferiríamos a fórmula do campo unificado ou as coordenadas do paraíso?

Seja como for, parece que estes tempos da ciência romântica já passaram. Hoje em dia ninguém pagaria os dolares necessários para enviar nem um micro-chip com a enciclopédia britância inteira numa sonda...

Thursday, October 11, 2007

Envelhecer com a M80

Não sou um grande fã de radio - sou mais do género de gostar de controlar a música que ouço do que deixar outros escolherem-na por mim.

Existe no entanto uma radio que gosto particularmente de ouvir quando me farto dos CD's que trago no carro - a M80.Para quem não sabe (hereges!), a M80 passa exclusivamente música dos anos 70,80 e 90 - e apesar de não possuir locutores mega conhecidos, considero-os aceitáveis e mais ou menos "sintonizados" com o objectivo da radio.


Tendo em conta que: não me costumam doer as pernas nem as costas, tenho uma óptima visão, consigo fazer exercício físico violento durante bastante tempo sem me cansar demasiado - sinto-me normalmente enérgico e forte. Ideologicamente não me sinto ultrapassado ou sequer antiquado (apesar de sempre me ter considerado um "clássico").

No entanto, apesar de não me sentir velho fisicamente ou psicologicamente, quando descubro que ainda sei de cor a letra de uma música que esteve nos tops há 20 (ou 30!) anos atrás fico a pensar se isto não será o princípio do "ficar velho". De repente começo à procura de outros sinais:

- Realmente não gosto lá muito da música que se ouve hoje em dia...

- E o que dizer dos hábitos da juventude - nocivos e entediantes no mínimo, provavelmente mesmo perigosos e escandalosos!

- E em relação aos jogos de computador? Certamente já não se fazem como no "meu" tempo!

- A televisão é uma desgraça - só passam porcarias!

- Os jornais já não são o que eram - só passam mexericos e trivialidades. E o que dizer dos jornais que são distribuídos de graça? Uma modernice sem sentido!


É assim que começo a pensar que se calhar já começo a não fazer parte do "futuro". Começo a pensar que na melhor das hipóteses eu sou o "presente", um pouco a tender para o "passado"...

Wednesday, September 19, 2007

...And the oak tree and the cypress grow not in each other's shadow

Antes de mais tenho que dizer que não gosto de casamentos (as minhas desculpas a eventuais leitores em cujos casamentos eu tenha estado).
As minhas objecções a este fenómeno sócio-religioso são sobretudo ideológicas, mas o lado prático também não ajuda (detesto ter que vestir fato e gravata para estar uma tarde inteira a comer sentado) - embora frequentemente aceite participar em casamentos por consideração por (pelo menos) um dos noivos.

Houve no entanto um casamento a que fui e que me impressionou (pela positiva) - no final cheguei a ter pena de ter acabado. Foi um casamento de extremo bom gosto e que chegou inclusive a comover-me - foi algo que me marcou. Tudo tinha sido escolhido e preparado com um cuidado e atenção que me fez pensar.

A meio desse casamento um dos amigos do noivo dedicou aos noivos um poema que me fascinou. O poeta chama-se Khalil Gibran - um libanês/americano que o escreveu por volta de 1920. Raramente senti as minhas ideias tão bem expostas por outra pessoa.
Este poema insere-se numa série de poemas (alguns deles muito bons) que ele escreveu chamados "o profeta" e que podem encontrar aqui: http://leb.net/gibran/works/prophet/prophet.html


Marriage


Then Almitra spoke again and said, "And what of Marriage, master?"
And he answered saying:
You were born together, and together you shall be forevermore.
You shall be together when white wings of death scatter your days.
Aye, you shall be together even in the silent memory of God.
But let there be spaces in your togetherness,
And let the winds of the heavens dance between you.
Love one another but make not a bond of love:
Let it rather be a moving sea between the shores of your souls.
Fill each other's cup but drink not from one cup.
Give one another of your bread but eat not from the same loaf.
Sing and dance together and be joyous, but let each one of you be alone,
Even as the strings of a lute are alone though they quiver with the same music.
Give your hearts, but not into each other's keeping.
For only the hand of Life can contain your hearts.
And stand together, yet not too near together:
For the pillars of the temple stand apart,
And the oak tree and the cypress grow not in each other's shadow.

Thursday, September 13, 2007

Um torneio diferente

Certa vez, depois de um jogo de ténis de mesa, dei boleia a um dos meus adversários.

É um homem já nos seus 60, um pouco falador demais (penso que muita a gente no meio o vê como um pouco chato). Parece mais velho - as mãos tremem-lhe, gagueja um pouco e fala com a boca à banda, ao estilo de quem já sobreviveu a uma valente trombose.
Surpreendentemente o estilo de jogo dele é jovem - joga ao ataque, num estilo de jogo aberto, enérgico e fisicamente exigente. As hesitações que se notam na fala não transparecem durante o jogo - parece que se transfigura.

Assim que acaba o jogo, a cara volta a ficar esmorecida, os ombros rebaixam-se e ele diz-me: "tu-tu-tuuuuu ga-ganhaste-me, mmmmaaasss podias ter-ter-ter-ter jogado melhor!", ao que ele começa a explicar-me os meus erros (com alguma perspicácia, há-que o dizer).
Simpatizo com ele desde que o vi pela primeira vez, há uns dois anos.

Quando o estou a deixar à porta de casa, ele convida-me para um torneio no dia seguinte. É um torneio no clube do bairro dele, onde segundo ele iriam vários jogadores ao nosso nível - e sobretudo o filho dele, por quem é evidente que ele nutre um orgulho que ultrapassa o meramente paternal para atingir a quase idolatria.
Decido aceitar.

No dia seguinte chego cedo. O clube acaba por ser nas traseiras de uma tasca no meio da tapada da ajuda. No salão de baile carregado de fitas e outros adereços festivos - e onde estão (temporariamente) as duas mesas de jogo, encontra-se também um velhote orgulhosamente desdentado, que me sorri e pergunta o nome para ele conferir na curta lista de jogadores. No ar ressoa música pimba em altos berros - começo a perceber que o torneio não é bem o que eu esperava...

Entretanto chega o meu anfitrião - vem chateado porque alguns dos jogadores que ele ansiava para garantir um bom nível afinal não vêm. Não sei porquê, acho que é comum acontecer-lhe estas desistências de última hora...
Os outros adversários começam a chegar - alguns miúdos, e dois velhotes - um deles com boné de pala e tudo, que nunca chegou a tirar. Também chega um homem que é tratado como o "presidente", acompanhado por uma mulher que parecia ir vestida para uma festa. Percebo então que o torneio é o torneio inaugural daquele espaço, fazendo parte das festividades. O presidente é o presidente da junta de freguesia, que foi participar na festa. Quando o meu anfitrião me pede para usar o uniforme da equipa da casa percebo que é uma festa particular e sinto-me a mais, mas decido ser camarada e fazer a minha parte para ajudar à festa.
Entretanto já chegou o filho pródigo. Afinal até já o conheço de vista de alguns torneios - é um jogador bastante acima do meu nível (ou do pai dele), que no entanto tem um ar de quem tem um problema com o nariz, e que tem sempre que o manter virado para cima senão ainda cai - o que o obriga a olhar para os outros de cima para baixo e à distância. Ele também parece ficar um bocado desconcertado com o torneio - provavelmente veio tão enganado como eu.

Ele começa a falar comigo e finalmente faz a pergunta que o incomoda:

"O que é que estás a fazer aqui?",

mas que na realidade soou mais a:

"Eu tenho que vir a estas estopadas porque ele é o meu pai, mas porque é que raio tu estás aqui a aturar isto?"

A atitude dele incomoda-me um bocado, e começo a temer (justificadamente, como vim a comprovar) pelo pai dele.

Entretanto começa o torneio. Calha-me jogar contra os dois velhotes - um deles jogou sempre com o telemóvel no cinto das calças, o outro nunca tirou o seu boné. Ainda consigo divertir-me bastante - acho muita piada a esta componente social do ténis de mesa e não me incomoda nada jogar contra pessoas francamente mais fracas que eu.

A certa altura chega o jogo que eu temia: pai contra filho.
É com muita tristeza que vejo o filho, na altivez do seu nariz empinado e franzido de quem se acha superior a um torneio daqueles a deixar o pai ganhar de uma forma demasiado evidente. O velhote (que não é parvo) fica bastante desgostado no final - o outro nem sequer tentou dar-lhe luta, e a vitória saíu-lhe imerecida. Penso ler na cara do pai a luta entre dois pensamentos antagónicos:
- ou o filho afinal não joga assim tão bem como ele sempre idealizou
- ou o filho está a fazer um frete e não quer estar ali a jogar com o pai~

Entretanto ele vem ter comigo a desculpar o filho dele - "não está num bom dia". Entristece-me pensar quantas vezes é que o filho fará um esforço por estar num bom dia de forma a poder melhorar o dia do pai. Fiquei sinceramente triste por ver este pai que partilha o hobby do filho a ver negado o prazer de o praticar em família com o jogador que mais admira. Achei uma falta de respeito tal que tive vontade de gritar com este filho de coração empedernido, que não mostra o mínimo sinal de se arrepender perante o ar triste do pai.

Quando este jogo acaba fico a pensar no jogo seguinte. É a final entre mim e o pai amargurado, e eu não sei o que fazer. Se jogar para ganhar, provavelmente ganho - mas não quero ficar com a taça daquela festa que não me pertence. Se jogar para perder, corro o risco de tornar ainda mais amarga a vitória do pai.
Decido então jogar para o espectáculo, com movimentos mais difíceis, amplos e rápidos - mas bastante menos eficientes. Penso que deve ser o suficiente para me garantir uma derrota bonita, ao mesmo tempo que agrada ao escasso público e é mais condizente com o espírito de festa (supostamente) reinante.
É um estilo de jogo que me dá particular prazer jogar, e até encaixa bem no estilo energético do meu adversário pelo que consigo manter uma actuação muito convicente, e perder por uma unha negra sem nunca realmente ter que fazer por perder - apenas fiz uma má opção táctica, o que é bastante mais convicente.
No final todos saem a ganhar - o meu adversário que ganhou um belo jogo, o público que ficou satisfeito com um jogo bonito e mexido - à altura de uma final, e eu que me posso deixar afundar num honroso e de certa forma relativamente obscuro segundo lugar.
A minha única fonte de tristeza no final foi pensar que aquele filho ingrato não deve ter sequer percebido a diferença entre a vitória do meu adversário e a do pai dele. Também não sou eu quem lhe vai ensinar - afinal, um bom pai teve ele e não me parece que lhe tenha dado muita atenção...

Tuesday, August 21, 2007

Viagens - bebendo água em buddanath

O calor aperta enquanto subo os degraus de buddanath.
Enquanto caminho vou-me maravilhando com os grandes budas que sorriem a dar-me as boas vindas (na minha opinião uma postura pouco condizente com a filosofia budista).
Confesso que não faço ideia sobre onde estou - limitei-me a seguir os meus companheiros de viagem que conheci ontem e que parecem saber bem o que querem ver.

De repente somos abordados por um rapaz. Num inglês perfeito - mais próprio de um londrino do que de um rapaz de uns 15 anos que mora em Katmandu - ele oferece-se para nos guiar pelo templo. Nós olhamos uns para outros, intimidados pela situação e em busca do sentimento de grupo.
Acabamos por decidir aceitar quando ele nos diz que não temos que lhe pagar nada - no final decidimos se lhe damos alguma coisa ou não.Durante um bom bocado ele guia-nos pelo templo, explicando-nos numa voz alegre (uma alegria simultaneamente infantil e solene) - e sempre num inglês espantosamento perfeito - o significado das bandeiras, das rodas de oração e de todos os estranhos adereços que populam este local de culto budista.

Entre uma efeméride e uma história, consigo fazer-lhe algumas perguntas. Ele trabalha nas férias da escola para ajudar os pais - passa o verão ali, a entreter turistas. Afirma ter sonhos de vir para a faculdade - mas não consigo perceber se ele o diz para me satisfazer a mim, a ele ou aos seus pais. Enquanto bebo água da minha garrafa noto que ele parece estar com sede. Ofereço-lhe a minha água, que ele recusa prontamente. Eu insisto e é então que tenho oportunidade de presenciar algo que me vai fazer lembrar deste passeio mesmo daqui a 4 anos, quando escrever este texto. Nessa altura posso não me lembrar muito bem deste sítio, posso nem saber muito bem se realmente se chamava buddanath ou se tinha qualquer outro nome. Posso já ter-me esquecido de algumas das maravilhas e exotismos que me rodeiam - mas certamente que me vou lembrar da forma como este rapaz de 15 anos de tez escura e com um inglês perfeito, que não pode jogar à bola nas férias para poder ganhar dinheiro para dar aos pais e que provavelmente nunca saíu para muito longe de Katmandu me dá uma lição sobre educação e respeito ali no meio daquele calor e daquelas escadas cansativas:
É com muda reverência que o vejo pegar cuidadosamente na minha garrafa com as duas mãos, e com muito cuidado - de forma a não entornar nem uma gota da água que não lhe pertence - ele segura a garrafa com o gargalo alguns centímetros acima da boca dele e despeja uma quantidade mínima de água sem nunca tocar na garrafa com os lábios.

É um gesto feito com uma tal simplicidade, cuidado e respeito que me há-de impressionar durante muito tempo...

Wednesday, August 8, 2007

God Delusion - a influência das orações

De vez em quando leio um livro que acho que vale mesmo a pena ler. Isto aconteceu-me recentemente com o "God Delusion" de Richard Dawkins.

Apesar de ainda estar a meio, já percebi que vai ser um livro que provavelmente vou gostar de ler até ao fim. Está escrito de uma forma muito engraçada (a roçar o sarcástico).
O livro é uma espécie de manifesto anti-Deus (Dawkins é um ateu convicto), escrito por um biólogo que influenciou bastante o trabalho recente sobre evolução - um seguidor convicto de Darwin.

É um livro um pouco forte - a roçar o agressivo - mas tem alguns pontos muito interessantes.


Uma das histórias mais interessantes do livro tem como raiz este estudo: http://www.mowatresearch.co.uk/uploaded_documents/Benson.pdf

Acontece que em 1997 decidiu-se conduzir um estudo sério sobre a influência da oração sobre a recuperação de doentes. Este estudo foi comparticipado pela Templeton Foundation (http://en.wikipedia.org/wiki/John_Templeton_Foundation), uma fundação que Dawkins acusa de estar intimamente ligada a movimentos cristãos (e daí ele ainda achar mais delicioso o resultado).

O nosso bom doutor Benson decidiu pegar numa em cerca de 2000 doentes cardíacos a recuperar de intervenções cirúrgicas e dividi-los em três grupos:
- O primeiro não iria receber qualquer tipo de oração adicional
- O segundo iria receber orações em seu favor, "oferecidas" por parte de um grupo de fieis de várias paróquias que iam assim participar no estudo. Este grupo de doentes não saberia que estavam a rezar por eles
- O terceiro grupo iria receber orações em seu favor, mas seriam informados que isto ia acontecer.

Este estudo decorreu durante vários anos e no final comparou-se os resultados. Aparentemente não existia qualquer diferença estatística entre a taxa de recuperação dos dois primeiros grupos.
Curiosamente, o terceiro grupo demonstrou uma taxa de recuperação um pouco inferior. Segundo Dawkins isto deveu-se a uma reacção por parte dos doentes do tipo:
"o quê? Já tiveram que chamar a equipa das rezas? Devo estar meeeeeesmo lixado..."


As reacções foram várias (um bom artigo sobre pode ser encontrado aqui: http://www.nytimes.com/2006/04/11/opinion/11lawrence.html?ex=1186718400&en=d7ec9d9a551102b2&ei=5070). Não me vou pronunciar (pelo menos para já) sobre o que acho sobre este estudo, sobre as rezas ou sobre as conclusões - mas não deixa de ser um estudo (e um resultado) curioso.

Tuesday, July 10, 2007

«Eles» não me levam nem um tostão a mais

Este é um discurso que costumo ouvir com alguma regularidade. «eles» são obviamente o estado português e normalmente estes comentários surgem de uma forma inflamada em conversas relacionadas com impostos.

Bem, tenho que dizer que acho muito curioso o facto de que eu é que sou o libertário que defende uma menor intervenção estatal e que não liga muito às noções de pátria ou de bandeira, mas normalmente são pessoas mais conservadoras e defensoras do status quo que acham que o pronome adequado para o estado é a terceira pessoa do plural em vez da primeira.

Na minha opinião o que se passa é que as pessoas não gostam de pagar impostos. Normalmente a razão apresentada é o facto de que os impostos são frequentemente mal gastos e que existem coisas que funcionam muito mal no sistema - nunca percebi como é que a partir deste argumento se chega à conclusão que não se deve pagar, mas deve ser algum tipo de limitação minha.
Um argumento um pouco mais fácil de entender é o facto de que existe injustiça fiscal e portanto "eu não pago se os outros não pagam" - o que equivale a: se existem parasitas, então eu também quero ser um! (normalmente as pessoas não reagem muito bem quando lhes refraseio o argumento desta forma)

Por exemplo a seguinte frase:

"O estado gasta mal o dinheiro do estado"

Normalmente ouço-a enunciada da seguinte forma:
"«eles» gastam mal o «nosso» dinheiro"

Raramente ouço:
"«eles» gastam mal o dinheiro «deles»"

e é mesmo MUITO raro ouvir:
"«nós» gastamos mal o «nosso» dinheiro"

(O mais perto que que já ouvi foram políticos da oposição a dizer "«nós» gastamos mal o «vosso» dinheiro", em que este «nós» quer na realidade dizer «eles»)

Ainda pior que isso, a prática de considerar o estado como um «eles» chupista que não merece nada tornou-se tanto um lugar comum que hoje em dia muitas pessoas pensam que sou um maluquinho só porque decidi pagar os impostos sobre as obras da minha casa. Quando digo que pedi uma factura que me vai custar alguns milhares de euros acham que eu sou rico ou que não regulo bem - e mesmo depois de eu explicar as razões que me levaram a fazê-lo, raramente as pessoas mudam a sua forma de pensar (embora já tenha acontecido).

"O povo tem os políticos que merece"

Viagens: "tomem lá a chave, volto dentro de uma hora"

Após dois ou três dias de viagem pelo Alasca eu e o meu companheiro de viagem estávamos com um certo.... mau aspecto. Tínhamos passado as últimas duas noites a dormir em parques de campismo à chuva, em terrenos alagados e enlameados, sem sítio para tomar banho. O nosso carro alugado não era propriamente um portento e tinha o mesmo mau aspecto que nós.

Eis que chegamos a uma pequena povoação chamada Homer - um sítio muito bonito rodeado por água, montanhas e verde (bem - esta seria uma boa descrição para quase todo o alasca) - e começamos à procura de um sítio para ficar.
Depois de procurar um pouco chegamos a uma vivenda um pouco isolada - já fora da povoação. Era uma vivenda muito bem arranjada situada na encosta do monte - um sítio com uma vista privilegiada sobre a área circundante.Batemos à porta com algum receio da recepção que duas pessoas com o nosso aspecto teriam num sítio como aqueles. Eu só pensava que se fosse na Europa e aquela casa fosse minha, provavelmente nem sequer abriria a porta.
A senhora que nos abriu a porta mandou-nos logo entrar para vermos o quarto que ela tinha para alugar. Era um quarto muito bem arranjado (num estilo um pouco exagerado e infantil, na minha opinião) - via-se que tinha pertencido ao filho(a) que entretanto tinha saído de casa, e que ela tinha transformado o quarto de forma a poder receber hóspedes.Eu estava a sentir-me mal só de me sentir tão sujo numa casa tão imaculada e tratada com tanto cuidado, mas o verdadeiro choque ainda estava para vir.

Ela levou-nos ao segundo andar onde ficava uma grande sala. Haviam umas portas de vidro na parede que dava para a varanda e que davam uma vista fabulosa. Toda a sala estava cuidadosamente decorada com todos os confortos modernos - não havia dúvida que aquela pessoa morava ali.
Perguntou-nos se queríamos ficar naquela noite, ao que respondemos logo que sim. Eis que então ela se vira e diz: "óptimo, tomem lá a chave de casa. Eu tenho que ir buscar a minha mãe à estação de comboio e volto daqui a uma hora. Se precisarem de alguma coisa sirvam-se, se quiserem liguem a televisão, as toalhas para o banho estão acolá, etc. - e foi assim que ficámos sozinhos numa casa de uma pessoa que não conhecíamos, com a chave de toda a casa e o nosso carro parado à porta. Ela nem sequer nos pediu os passaportes!

No dia seguinte ao pequeno almoço tive mesmo que perguntar se aquele comportamento era normal, ou se ela era simplesmente "diferente". Durante a conversa pareceu-me realmente diferente em relação ao que estava à espera de ver nos estados unidos - uma idealista de esquerda que até já tinha participado em manifestações anti-bush. Durante a conversa (o que vim a confirmar durante a viagem) descobri que existia muita gente assim por aqueles lados - uma espécie de libertários ultra-ecologistas, habituados a viver numa grande comunidade do tamanho de um continente - um choque para quem estava à espera de encontrar eremitas a correr atrás dos ursos com uma espingarda na mão.

E em portugal há pessoas que acham que eu sou estranho por não trancar a porta da rua à noite antes de me ir deitar - viajar é aprender...

Tuesday, July 3, 2007

Não sei o que quero, mas quero JÁ!

Esta frase foi-me dita por um "crente" como sendo algo que é suposto representar as pessoas do signo de Carneiro.
Pessoalmente não acredito em signos (frequentemente tiro um prazer sádico em tentar apanhar em contradições lógicas as pessoas que acreditam) mas tenho que confessar que acho que esta frase é realmente uma boa definição de mim mesmo.

Lembro-me que quando era pequeno haviam dois tipos de prenda que detestava receber no natal:
- A primeira eram meias e cuecas. Na minha visão materialista e interesseira achava que este tipo de prendas nem deveriam contar como prendas - afinal, eram uma obrigação parental! No máximo deveriam contar como prendas para os meus pais (ah, se eu pudesse andar para trás no tempo e dar-me umas boas bofetadas!).
- A segunda eram qualquer tipo de prendas que eu achasse muita giras, mas que viessem sem pilhas. Quando tinha que esperar aqueles dias adicionais sem poder usar os brinquedos novos sentia uma frustração inimaginável. Era pior do que se a prenda viesse partida ou avariada - afinal, quem é que tinha sido tão desinteressado ao ponto de me oferecer algo que não funcionava apenas por descuido? Aquela prenda haveria de contar CONTRA o ofertante, em vez de contar a favor!

A minha mãe costuma contar-me a história de uma vez eu estar a fazer uma birra dentro de uma loja. Ela perguntou-me porque é que eu chorava e eu disse: "Quero qualquer coisa! Não sei o que é, mas compra-me QUALQUER COISA!" (pensando bem, andava para trás no tempo e dava-me a mim mesmo MUITAS e EXCELENTES bofetadas)


Hoje continuo a não gostar de receber meias ou cuecas - na realidade não gosto particularmente de receber bens materiais como prendas (na minha próxima festa de anos acho que vou pedir a cada pessoa que leve e me conte uma história sobre si mesmo que eu nunca tenha ouvido) - mas continuo a detestar chegar a casa com um "brinquedo" novo e descobrir que falta qualquer coisa para que eu possa usar.

Ainda há uns dias senti uma frustração enorme quando cheguei a casa com pincéis, tabuleiros de pintura, cabos telescópicos, um berbequim para mexer a tinta, jornais, plásticos - e descobri que a cor da tinta que eu tinha comprado estava errada, obrigando-me a voltar à loja antes de poder começar a pintar - a minha irritação devia ser quase palpável.
Por outro lado noto que sou assim quando arranjo alguma coisa que goste de fazer: a minha namorada já sabe que quando começo a fazer um puzzle novo, um jogo de computador novo, quando encontro umas pautas de uma música que procurava há algum tempo ou quando lhe digo que tenho um projecto novo e interessante no trabalho - que vai ter uma cama mais fria nas próximas noites (há que reconhecer que ela tem muita paciência).

Esta impaciência tem um impacto bastante mensurável no meu trabalho: embarco com muita vontade em projectos novos, que por outro lado tenho pouca paciência/vontade de acabar. No final acho que este facto até me dá alguma vantagem, uma vez que acabo por andar sempre à frente de quem começa mais devagar, o que me permite controlar melhor a forma como as coisas se desenvolvem.
Acho que não quero mudar - decidi aceitar que sou assim impaciente e pronto. Optei antes por desde cedo arranjar mecanismos para me defender de mim próprio: o que faço é tentar ter muitas coisas interessantes a decorrer em simultâneo, o que me permite ter sempre a minha atenção focada em algo enquanto espero que o resto aconteça. Um bom exemplo disto é o facto de frequentemente andar com um livro atrás (acho que se não fosse tão impaciente não teria lido um décimo dos livros que li). Por outro lado uma das principais razões pelas quais deixei o parapente foi porque não tinha paciência para esperar pelo vento propício.

Monday, June 25, 2007

O sarau de piano

Sábado às seis da tarde. Lá fora o sol brilha, a convidar mais a passeios na rua do que a actividades de interior.
Passeio os olhos pela sala desta pessoa que mal conheço. A figura dominante ocupa quase metade do espaço total: um enorme piano de cauda - um piano de concerto, preto, aberto, à espera. Está assente em esferovite, e por baixo dele estão um monte de almofadas, um cobertor e um grosso tapete - tudo em nome da paz e harmonia entre vizinhos.

Ao fundo vejo uma grande estante repleta de livros. Dá para ver à distância que a estante está bem organizada - as prateleiras de cima consistem sobretudo de enciclopédias e livros de consulta, enquanto que mais abaixo estão os romances e literatura de ficção - o prazer bem separado do trabalho. As prateleiras de cima têm bastantes mais molduras com fotos várias a impedir o fácil acesso aos livros - o que me faz pensar que os livros de baixo têm bastante mais rotação e uso e são porventura considerados mais importantes - ou simplesmente as molduras vêm-se melhor nas prateleiras de cima. Em geral as lombadas estão alinhadas e nota-se que existe uma organização temática - mas no meio da ordem existem alguns fora do sítio, apontando para uma utilização despreocupada e corriqueira de quem tem livros para os ler e usar - e não para os exibir.

Ao lado dos livros está a estante dos CD's. Durante a conversa surge uma estimativa - mais de mil - para o número de cd's que ali estão. Estão meticulosamente organizados e (segundo o que me dizem) cuidadosamente catalogados - vê-se que foi algo que foi coleccionado com muito carinho e que é alvo de algum orgulho.

Nas paredes existem alguns quadros - nem muitos nem poucos: a conta certa. Um campo de milho impressionista (possivelmente um van gogh, mas não assinado, o que para mim não é costume nos seus quadros) ocupa a posição central enquanto que alguns quadros de pintores menos conhecidos (todos alusivos à música) ocupam os espaços menos importantes. A sala transpira (na minha opinião) a bom gosto, cuidado e erudição.


Estamos uns 12 na sala. Metade veio para ouvir, a outra metade para tocar. A diferença entre uns e outros é puramente temporal: uns são alunos do dono da casa, os outros já foram (ou são acompanhantes, como é o meu caso). Enquanto esperamos pelos mais atrasados, observo o professor enquanto tenta ambientar as pessoas em sua casa, simultaneamente acalmando os seus alunos e entretendo os convidados. Nota-se que não tem muito jeito para estas coisas - mesmo assim a sua disposição alegre e despreocupada consegue arrancar alguns sorrisos nervosos dos pianistas que tremem de tensão, e alguns sorrisos irónicos de quem sabe que não está lá para prestar provas e percebe o que custa tocar para uma audiência desconhecida.

Quando os últimos retardatários chegam, está na hora de começar a música. Como ninguém se voluntaria, o professor acaba por escolher a ordem das exibições - não por acaso, há-que dizer: primeiro os mais novos, depois os mais experientes num crescendo de complexidade e dificuldade técnica das peças. O professor distribui algumas partituras ao público, para quem (como eu) gosta de ouvir música com legendas.
A certa altura tenho mesmo a oportunidade de seguir a música na pauta da própria intérprete. Dá-me sempre um prazer voyeurista olhar para as pautas usadas pelos músicos - normalmente os erros, dificuldades, passagens mais complicadas estão marcadas nas pautas a lápis pelo próprio. É algo quase íntimo, que por vezes permite perceber toda a relação entre o músico e a música.
Durante o concerto tenho oportunidade de ouvir músicas conhecidas - algumas ainda toco hoje, outras fazem-me andar vários anos para trás no tempo. Identifico os pontos em que tenho (ou tinha) mais dificuldades e comparo-os com as dificuldades que encontro no intérprete. Comparo estilos, ideias e opiniões com a pessoa que toca, enquanto que mudo corrijo os meus erros e me delicio a perceber a diversidade de maneiras que existem de tocar a mesma nota.

Depois da música, segue-se um pequeno jantar com confraternização e troca de ideias. Temos ainda direito a assistir à escolha de alguns filmes que o professor preparou, de forma a desvendar um pouco mais aquilo que ele considera ser o mundo da música, o que é importante ou não, o que é que pode ser boa ou má música.



Acho simplesmente brilhante esta ideia de juntar o passado e o presente/futuro numa só sala. No final toda a gente sai a ganhar: os alunos têm a oportunidade de testar os nervos perante uma audiência conhecedora mas desconhecida, enquanto que os ouvintes se conseguem manter em contacto com o mundo da música do qual já fizeram parte há alguns anos atrás, mas que lentamente foram abandonando. Curiosamente, aquele que tem menos a ganhar até é a pessoa que oferece a casa, o tempo, o piano e o seu trabalho para estas pequenas reuniões. Considero estes encontros um verdadeiro acto de dar - tive alguns bons professores de piano no tempo em que estudei, mas nunca vi nenhum que se dedicasse desta forma aos seus alunos e à sua arte. No final foi uma tarde que valeu não só pelo prazer de ver e aprender algo sobre música, mas também para ver e aprender algo sobre ser Professor.

Friday, June 22, 2007

A minha (falta de) ambição

Recentemente aconteceram uma série de alterações na estrutura da empresa onde eu trabalho. Como seria de esperar, houve uma grande dança das cadeiras, com a inevitável febre para se perceber quem é que ia para onde. Como em todas as grandes reorganizações, houve pessoas que subiram de poleiro, outras que desceram (pelo menos em termos comparativos), outras que ficaram exactamente na mesma e finalmente aquelas que ninguém percebeu se subiram ou se desceram (nem elas próprias).

O que acho interessante nisto tudo é a forma como as pessoas reagem, e a comparação que faço com a minha própria reacção.

Bem - eu já escrevi aqui há algum tempo atrás sobre a ambição dos outros e sobre os meus objectivos pessoais. De forma a não me repetir aqui - e porque penso que no fundo esta situação está relacionada essencialmente com ambição e objectivos pessoais - desta vez vou escrever da minha (falta de) ambição.

Confesso que por vezes me preocupa aperceber-me que a minha ambição em termos de carreira parece ser um pouco ..... diminuta..... quando comparada com a maior parte das pessoas com quem trabalho. Nestas alturas fico a pensar se não haverá nada de errado comigo - será que a falta de ambição não pode vir a ser um problema? Será que é um comportamento normal, ou devo considerar doentio? Será que devia tentar mudar?

Realmente, quando penso nisso consigo imaginar-me daqui a alguns anos ainda a gostar do que faço hoje (o que me parece bom). Em simultâneo imagino-me como aquela pessoa mais velha que foi ficando no mesmo sítio porque nunca teve vontade de mudar, enquanto todos os outros seguiram em frente - o que já não me parece tão positivo.

(Este último parágrafo fez-me lembrar da seguinte história da minha infância:

Eu entrei para a pré-primária um ano mais cedo. Fui fazendo uma série de amigos durante o tempo que lá passei, até que no início do ano escolar em que eu tinha 5 anos cheguei à escola e apercebi-me que a maior parte dos meus melhores amigos não estavam lá. Eles eram um ano mais velhos e portanto tinham passado para a primeira classe, que era noutra zona do edifício - enquanto que eu era suposto ficar no mesmo sítio por mais um ano.

O recreio da pré-primária era paredes meias com o recreio da primária, separado por uma grade - e eu lembro-me perfeitamente de nesse dia estar agarrado à grade a olhar tristemente para o recreio da primária onde estavam os meus amigos todos, a pensar que aquilo não estava certo. Segundo reza a história (confesso que não me lembro bem desta parte), quando voltei do recreio peguei nas minhas coisas e caminhei com segurança e de livre vontade para a zona da escola onde eram dadas as aulas da primeira classe. Entrei pela sala de aula dentro, sentei-me e anunciei em voz alta para toda a gente ouvir que ficava ali - o que acabou por acontecer.

)

Esta história - e as conversas que tenho com pessoas mais ambiciosas que eu - fazem-me pensar que por vezes faço coisas por razões que de alguma forma parecem ser diferentes das razões que motivam as outras pessoas - o que inevitavelmente me leva a pensar se estarei errado, ou a ajuizar mal alguma coisa. Será que daqui a 10 ou 20 anos me vou arrepender de não me ter preocupado mais com a minha carreira? Será que estou a ser imediatista? Ou pouco responsável? Ou (ainda pior) desinteressado?

Por outro lado, parece-me notar em mim em algumas situações uma serenidade e despreocupação que acho que não teria se estivesse preocupado com ambições de futuro ou de carreira. É um facto que sinto que consigo apreciar o trabalho que faço hoje em dia de uma forma mais salutar do que se pensasse que o que faço agora é apenas um degrau para chegar a algum outro lado.

A minha conclusão é a de que sou uma pessoa que não tenta olhar demasiadamente longe no horizonte para saber para onde vai - vou-me preocupando em dar um passo de cada vez e (tentar) ver bem onde é que tenho os pés. Isto ajuda-me a não tropeçar e a aproveitar melhor a viagem, mas pode-me levar para becos sem saída. Suponho que estou simplesmente demasiado entretido com a caminhada para me preocupar com a direcção - algo que se calhar não é muito adulto nem responsável, mas que me permite maximizar o gozo que tiro do dia-a-dia. Não sei se isto faz de mim uma pessoa infantil ou irresponsável - acho que mesmo que faça, não quero saber.

Já agora, é curioso pensar nas consequências de uma decisão destas: se eu não tivesse decidido ir um ano mais cedo para a primeira classe, não teria conhecido NENHUM dos meus amigos da primária, secundária e universidade - e posso dizer que houveram pessoas que me influenciaram mesmo MUITO. É assombroso pensar o quanto a minha vida actual seria diferente se eu não tivesse tomado aquela decisão naquele dia... E tudo porque os recreios eram separados!

Monday, June 18, 2007

Porque é que eu quis pintar a minha casa?

As pessoas que me conhecem melhor provavelmente estranharão o facto de eu ter querido pintar a minha casa. É algo que eu não gosto de fazer - nunca gostei nem tive muito jeito para trabalhos manuais. Quando morava com a minha mãe e haviam obras, fugia delas tão depressa e para tão longe quanto possível (as más línguas dirão que a última vez que a minha casa foi pintada eu fugi para o Nepal).
Provavelmente pensarão que não foi uma decisão só minha - e têm razão - mas a realidade é que o meu voto foi precisamente no sentido de não pagar a alguém para o fazer por mim.

Quando fui viver sozinho, optei propositadamente por passar alguns meses sem empregada, de forma a poder aprender e melhor apreciar o quanto custa fazer as coisas nós próprias - quanto trabalho dá limpar, lavar, tomar conta de uma casa. Hoje acho que fiz bem em escolher fazê-lo e aconselharia a qualquer outro na mesma situação.
Desta vez foi algo de semelhante - eu quis participar de alguma forma no processo de "criação" da casa para onde tenciono ir morar durante algum tempo. É uma forma de valorizar o trabalho ali investido e de me sentir parte (e merecedor) da própria casa. Acho importante que as pessoas se envolvam desta forma nas coisas que fazem parte das suas vidas - mesmo que apenas simbolicamente. Acho que acabamos por valorizar e dar mais atenção ao que nos rodeia quando participamos na sua criação com o nosso suor e não apenas com o dinheiro.

Da mesma forma aceitei a ajuda que alguns amigos ofereceram. Como não gosto da tarefa - acho que é algo que dá trabalho, é sujo e desconfortável e muitas pessoas não gostam de fazer - tentei não pedir explicitamente a ajuda de ninguém, mas antes aceitar alegremente quando ma ofereceram (houve inclusive pessoas que se ofereceram, mas que por uma razão ou outra - normalmente logística - acabei por não poder aceitar). Sempre admirei aqueles filmes em que a comunidade se junta espontaneamente para ajudar um membro a desempenhar uma tarefa - acho que é um acto de oferta com muito valor.
Reciprocamente gosto quando os meus amigos me pedem esse tipo de ajuda. Sinto-me elogiado por me considerarem próximo o suficiente para que estejam à vontade para me pedir ajuda. Ainda mais valor atribuí quando uma das pessoas me confessou (não para minha surpresa) que não teria pintado a casa dele, mas que me ajudou a pintar a minha.

No final fiquei satisfeito com o resultado e mais uma vez - apesar de andar com dores pelo corpo, cansado, e ter gasto mais de dois fins de semana com esta tarefa - não acho que me venha a arrepender de ter votado para que fosse desta maneira.

Tocar às duas da manhã

Duas e tal da manhã, a casa toda às escuras.

Na rua também está tudo calmo: não há carros a passar, pessoas a falar nem cães a ladrar - parece que estou sozinho no mundo!

A luz é insuficiente para ver o que faço - apenas consigo aperceber-me de uma zona mais clara, como se fosse um grande sorriso branco dirigido a mim. Pouso as mãos em cima do branco. Os dedos tacteiam à procura do acorde inicial - arrastam-se lentamente, a acariciar as teclas negras e a empurrar suavemente as brancas, enquanto tento perceber o que me apetece tocar. Música clássica, contemporânea, improvisos - a esta hora tanto faz.

Como em tantas outras coisas, é apenas necessário um pequeno empurrão inicial - um piparote - para que a coisa comece a andar e ganhe uma vida própria. Frequentemente as mãos encontram o sítio certo antes da mente e começam a tocar sozinhas. É neste momento que deixo a música fluir - deixo a janela da alma abrir-se e começo a espreitar lá para dentro, num misto de curiosidade racional e de sentimento irracional - os dois hemisférios do cérebro a trabalhar em absoluta harmonia, de uma forma que não consigo fazer em mais altura nenhuma.

Começo a pensar nas pessoas, nos amigos, nos sítios por onde tenho andado - na vida. Revejo conversas, retomo discussões interrompidas, ressinto-me, deleito-me, indigno-me, arrependo-me e orgulho-me - rio e choro. Passo por uma mistura única de pensar e sentir, embalada pela música que sai do piano e de mim e que parece ter enchido o mundo que ainda agora parecia estar vazio. Há uns dias atrás uns amigos meus falavam-me do prazer de sentir a música num concerto ao vivo - e como explicar-lhes esta orgia de sensações, em que deixo de perceber se toco a músico que sinto, ou se sinto a música que toco? Em que em vez de me deixar arrastar pela música, arrasto-a comigo?

São estes momentos que me fazem pensar que todos aqueles anos a aprender, estudar e trabalhar valeram a pena. Poucas pessoas se apercebem o quanto valorizo estes momentos, mas o que acho mesmo curioso é o facto de (quase) ninguém saber realmente porque é que parei de estudar - suponho que seja mais uma daquelas perguntas que as pessoas se esquecem de fazer...

Thursday, June 14, 2007

Quando dois amigos lutam

Sempre fui daquelas pessoas que têm amigos muito diferentes entre si. Tanto me dava com os "geeks" (sempre tive uma certa afinidade com esse grupo) como com os "cools". Com os filhos dos professores e com os mal comportados - com os ricos e os pobres. Um dos meus melhores amigos no secundário desistiu da escola no nono ano porque os pais não tinham meios para o manter lá - outros não perdiam nenhuma festa porque podiam pagar discotecas e bares todas as noites.

Uma consequência de ter um leque de amigos tão diferentes entre si é que frequentemente eles se davam mal uns com os outros. De vez em quando via-me envolvido no meio de conflitos - por vezes autênticas guerras - entre pessoas com quem me dava bem. Suponho que já toda a gente passou por isto - possivelmente nem tem nada a ver com o facto de ter um grupo de pessoas muito diferentes, e os conflitos acontecem sempre e em qualquer parte.

O facto é que estes momentos são frequentemente desagradáveis e desnorteantes para quem vê a luta a acontecer e se sente nos dois lados: como agir, como escolher? Devo tomar posição por um dos lados? Devo manter-me neutro? Devo sequer participar? Devo tentar influenciar o resultado? Devo tentar arbitrar para ajudar a resolver, ou devo afastar-me para não me ver envolvido na confusão?

O momento em que tive mais problemas em relação a esta questão foi quando os meus pais se separaram. Nessa altura foi particularmente doloroso tentar decidir como agir e penso que foi nesta altura que formei a minha posição actual sobre o assunto.

Hoje em dia tenho um comportamento pensado para estas situações.
Normalmente tento não tomar posição, a menos que depois de ouvir os argumentos de ambos os lados considere que haja "jogo sujo" de uma das pessoas, ou um lado que claramente não tem razão. Não é fácil que isto aconteça - quase nunca alguém tem toda a razão do seu lado, e frequentemente o jogo sujo surge como resultado de uma espiral de agressividade onde é difícil atribuir culpas unilateralmente.
Tento manter-me tão envolvido quanto possível para perceber o que se passa, dando sempre a entender que não vou participar nas "hostilidades". Disponibilizo-me para participar como mediador, mas evito manobras de bastidores (que podem ser mal entendidas) que possam influenciar o resultado. Basicamente tento estar lá para ajudar, mas não fazer com que o resultado depende de mim.


Um factor que uso muito frequentemente para decidir é o seguinte: não gosto nada quando alguém me tenta forçar a tomar uma posição. A pior coisa que um amigo me pode dizer quando luta contra outro amigo meu é: "ou estás comigo, ou estás com ele". Nestas situações quase sempre vou tomar posição junto da pessoa que não me obriga a escolher um lado. Não sei até que ponto é que isto é justo, mas é uma reacção que me sai naturalmente e que não consigo (nem tento) alterar.

É algo que tenho um certo interesse em saber - como é que as outras pessoas lidam com estas situações? Têm um comportamento pré-definido como eu, ou deixam-se guiar pelos eventos? Será que eu próprio sou demasiadamente inflexível, com uma maneira de actuar demasiadamente definida?

Tuesday, June 12, 2007

Ignorance is bliss

O título do post vem do Matrix - a certa altura o cypher está a falar com o agent smith e diz-lhe que prefere mergulhar na matrix, esquecer tudo e viver uma vida de luxo e ignorância, do que estar acordado na dura realidade onde se encontra. Ele quer esquecer que o mundo é um sítio terrível e prefere viver num irreal mundo de sonho, afastado das grandes preocupações e saboreando os pequenos prazeres que sente falta.

Frequentemente a sabedoria é associada com um certo grau de indiferença face à felicidade terrena. Alguns exemplos extremos poderiam ser:
- o budismo encara o nirvana (que não é mais que um estado de esclarecimento máximo e universal) como uma fase em que não existem emoções - buda não sentiu prazer por atingir o nirvana, nem pena ou compaixão em deixar o resto da humanidade para trás.
- os filósofos e sábios são frequentemente retratados em filmes e livros como ascetas que abandonam o mundo físico para se dedicarem à sabedoria pura. Deixam de ter prazer na comida, bebida e contacto social e íntimo e deleitam-se apenas com orgasmos filosóficos.

Bem, o facto é que a maior parte da humanidade não se preocupa com o nirvana ou com orgamos filosóficos - a maior parte de nós não há-de lá chegar (pelo menos nesta vida).

Assim sendo, em termos mais terrenos as perguntas sobre as quais quero dissertar um pouco é:
Será que no mundo real do dia a dia vale a pena darmo-nos ao trabalho de tentar saber mais - mesmo que o conhecimento seja doloroso - ou é preferível ignorar e seguir alegremente em frente? Vale mais a pena ser um parvo alegre ou um interessado sisudo e infeliz? Será que os parvos são alegres e os alegres são parvos, ou podem haver pessoas simultaneamente despertas e felizes?

Existem várias situações que se calhar tornam estas perguntas mais mundanas:
- Será que eu preferia a dor de saber que o meu conjugue me é infiel, ou preferiria viver na feliz ignorância?
- Será que eu preferia a dor de saber que tenho uma doença terminal, ou preferiria viver e aproveitar os meus últimos dias na ignorância desse facto?
- Será que eu quero saber que um amigo qualquer tem problemas que eu não posso resolver, ou prefiro nem saber para não ter que pensar nisso?
- Será que eu quero saber que o aquecimento global existe, ou prefiro ignorar o problema?

Algumas pessoas hão-de achar a pergunta estranha - possivelmente outras acharão simplesmente estúpida. Eu já lhe dediquei bastante tempo e interesse - já senti o peso desta dúvida. É mais frequente aparecer quando estamos a passar fases más, uma vez que nessas fases o peso de conseguir perceber a situação se torna muito maior.

Numa "vida" anterior conheci uma pessoa que me disse algo que na altura me perturbou muito:

"Quem me dera não saber certas coisas para poder ser mais feliz - as pessoas que sabem menos são sempre mais felizes!"
Para alguém que acha que dois dos objectivos principais devem ser aprender e aproveitar a vida, esta afirmação - vinda de alguém que eu achava particularmente clarividente - perturbou-me. Na altura pensei: "será que os meus objectivos de vida são demasiado ambiciosos - que eu não posso perseguir ambos e que vou ter que escolher? Será que estou fundamentalmente errado nos meus princípios?"

Durante algum tempo reflecti sobre este assunto.
Fui analisando o meu comportamento durante as fases mais difíceis porque fui passando. Fui experimentando e avaliando, fui observando os outros e vendo como é que eles fazem.
Olhando para trás para fazer essa análise, penso poder afirmar com segurança (e com algum orgulho, confesso) que nos últimos anos tenho caminhado num sentido de despertar e aprender, e que raramente fugi a responsabilidades.

Tentei também perceber o que é que poderia ter sido diferente se tivesse evitado tomar as decisões que tomei nessas alturas - a minha análise é que as coisas teriam provavelmente corrido pior e que hoje seria provavelmente menos feliz se o tivesse feito. Se calhar na altura não teria custado tanto (certas decisões foram mesmo muito difíceis de tomar e viver), mas hoje não poderia colher os frutos dessas escolhas - alguns deles muito doces. Afinal, "o doce não é tão doce sem o amargo".

Depois desta análise e de reavaliar os meus princípios concluí que a ignorância e indeiferença traz um tipo de felicidade que não me satisfaz - para mim é como ganhar uma corrida em que somos o único participante. Ficamos com a glória da vitória, mas sem o verdadeiro prazer da competição e da conquista. Hoje em dia comparo o não querer saber a uma tentativa de voltar aos despreocupados tempos de infância - por muito que tenha gostado desses tempos, acho muito mais interessante a vida que levo hoje. Confesso que tenho reservas em confiar numa pessoa que deseja ser néscia e não se preocupa em perceber a sua própria vida (e a dos que a rodeiam) - dá-me sempre uma ideia de irresponsabilidade e/ou infantilidade - por vezes de fuga à realidade.

O que percebi é que para mim não há mesmo hipótese. Neste momento não posso escolher ser mais ignorante ou indiferente, porque mesmo que o tentasse nunca conseguiria alhear-me do facto de que estava a ignorar ALGO. Deve ser por isso que algumas pessoas recorrem a expedientes para tentar esquecer - simplesmente para diluir a dor de saberem que estão a tentar esquecer algo que não é facilmente esquecido.
Tenho ainda que confessar que por vezes opto por tentar ignorar - nomeadamente em situações que não controlo ou sobre as quais sinto não poder actuar. O exemplo mais flagrante (sobre a qual falei aqui ainda há pouco tempo) está relacionada com a mendicidade. O que é um facto é que sempre que o faço, faço-o com a consciência (e dor interior) de quem acha que está a proceder mal - o que me deixa pensativo durante bastante tempo.


Seja como for, depois destes anos todos penso que posso pelo menos responder à minha antiga dúvida:

Hoje em dia acho que É mesmo possível procurar a sabedoria e encontrar a felicidade. Pelo menos para mim tem sido - e não trocaria nunca a felicidade que sinto por me sentir desperto, pela oca alegria da indiferença e ignorância.

Monday, June 11, 2007

Com grande poder vem grande responsabilidade

A frase é do homem aranha - não me incomoda nada ter como um dos meus princípios fundamentais uma frase tirada da banda desenhada (confesso que foi das poucas coisas que gostei de ver no primeiro filme da série).
Desde que os meus pais se separaram que comecei a aperceber-me da influência que poderia ter junto de outras pessoas. Foi também a partir daí que comecei a delinear a minha forma actual de usar essa influência, bem como a perceber o porquê da importância de exercer esse poder de uma forma cuidadosa.

Hoje em dia existem essencialmente três categorias de pessoas sobre quem exerço alguma influência: a família, os amigos e os colegas de trabalho mais inexperientes. Por muito chocante que isto possa parecer, não estou preocupado em exercer influência sobre outras pessoas que não estas - sinceramente não sinto que tenha nem o direito nem o dever de o fazer - e certamente que não tenho a vontade.
Eu diria que na sociedade de hoje, a maneira mais importante e comum de exercer a influência que temos sobre outras pessoas é através das ideias e opiniões que transmitimos uns aos outros. A questão fundamental com que normalmente me debato é: até que ponto é que eu devo dar a minha opinião a outra pessoa, quando esta NÃO é explicitamente solicitada? A partir do momento em que sinto ter influência, começo a sentir que a minha opinião pode ser importante ao ponto de alterar comportamentos ou opiniões dos outros. Existem várias razões para eu não querer influenciar alguém em demasia- posso não me ter apercebido bem da situação, posso ter princípios diferentes do meu interlocutor - ou posso simplesmente estar errado. O risco é que eu esteja a dar maus conselhos - e pior, maus conselhos que têm boas probabilidades de serem ouvidos e seguidos - provavelmente o simples facto de dar um mau conselho a um amigo numa situação importante far-me-ia ter um sentimento de culpa durante muito tempo, algo com que tenho dificuldade em lidar. Existe também o risco de eu aparecer junto dos outros como alguém que tem a mania que sabe, que tem sempre que opinar ou que pensa que é superior - o que é algo que faço muita força para evitar parecer.
O reverso da medalha é que por vezes as pessoas precisam mesmo de ouvir opiniões não solicitadas, pelo que frequentemente corro o risco de não ajudar alguém que precisa. É um problema que se acontecer não me deixa com tantos remorsos, uma vez que não consigo provar a mim mesmo que fiz mal ou sequer que a minha influência teria alterado o resultado - como tantas outras coisas, o facto de eu não opinar por vezes reveste-se de uma forma de egoísmo próprio, em que acabo por não ajudar outros para não me prejudicar a mim mesmo.

Assim, normalmente quando alguém me conta algo que acho merecer a minha opinião tento fazer (ou esperar) com que essa pessoa ma peça explicitamente. Se não conseguir tento pelo menos fazer o maior número possível de perguntas antes de formar uma opinião, de forma a tentar apreender tanto quanto possível a situação para minorizar o risco de erro. Quando acabo por dar a minha opinião, tento sempre convencer as pessoas a quem a transmito (quando o assunto é importante ou sensível o suficiente) a pedirem a opinião de outras pessoas que eu ache terem o mesmo tipo de influência que eu tenho. .Pessoalmente gosto imenso de receber opiniões de pessoas que respeito, as quais considero verdadeiras "prendas" carregadas de valor. Peço frequentemente opiniões - que muitas vezes me são negadas ou "amaciadas". Valorizo particularmente as opiniões sinceras e directas (e espontâneas).
Ainda não há muito tempo uma pessoa me disse (com alguma brutalidade, há que dizê-lo) que eu estava a fazer mal o meu trabalho, o que me deixou bastante chateado comigo mesmo (e um pouco também com a outra pessoa devido à forma brutal como me foi dito). Passado o choque da surpresa, acabei por ficar agradecido por me estarem a dar a oportunidade de melhorar.

Assim, quando estou com familiares ou amigos tento nunca dar uma opinião a quente, a menos que ma peçam. Apenas depois de ter medido bem uma situação e apenas no caso de achar que posso ajudar com a minha opinião é que a dou. Nunca minto e tento não dizer meias-verdades piedosas (nem sempre consigo, mas é raro fazê-lo). Quando me pedem a opinião tento ser o mais directo possível (há quem diria "insensível") e não-político - embora nem sempre dê a minha opinião completa de forma a evitar ser demasiado "bruto". Nunca recuso ser mais sincero quando isso me é solicitado - tudo o que as pessoas têm que fazer é pedir.

O único outro grupo de pessoas a quem dou opiniões são pessoas com quem trabalho e que têm menos experiência profissional que eu. Nestes casos a dúvida fundamental também existe: até que ponto é que devo transmitir a minha opinião, recolhida e transformada por vários anos de trabalho em condições que se calhar já não são a realidade de hoje - ou segundo os meus princípios, que podem não ser partilhados pelos receptores da informação? Até que ponto é que devo influenciar os desejos, sonhos e ideias de pessoas mais inexperientes? Quem sou eu para estragar/corrigir/alterar as esperanças dos outros com as minhas reservas, medos e vícios de velho do restelo? Este É um problema que me aflige bastante. Até agora optei por fazer como faço com os meus amigos: fornecer a minha opinião apenas se solicitada, e sempre com a ressalva de que é mais válida para o meu caso do que para a outra pessoa - e sempre acompanhada do conselho de que as pessoas procurem segundas opiniões e que não levem a minha demasiado a sério. Não é por acaso que o primeiro conselho que dou a alguém que começa a trabalhar na minha equipa é: ouve as opiniões dos outros e depois forma as tuas - nunca aceites simplesmente o que te dizem, mas pensa se achas que aquilo que te dizem está correcto para ti.
Por outro lado, tenho mais facilidade em fornecer a minha opinião sobre questões mais técnicas mesmo que não solicitada: se noto que a outra pessoa aceita bem essa posição, tenho acabado por me tornar numa espécie de professor/formador - mesmo que isso ultrapasse as minhas funções oficiais. Faço-o porque gostei quando mo fizeram a mim. Faço-o também porque acredito que é algo que faz falta no sítio onde trabalho. Finalmente faço-o para tentar maximizar as probabilidades de que as pessoas que me acompanharão em trabalhos futuros estejam tão bem preparadas quanto possível, de forma a que na altura me possam ajudar a fazer o meu próprio trabalho.

Wednesday, June 6, 2007

Mendicidade - oferecer ou não oferecer? (II)

(continuação do post anterior)

No final, a decisão sobre se ofereço ou não provém de uma mistura destas quatro factores (princípios, compaixão, pragmatismo e egoísmo). Depende muito do meu estado de espírito e da forma como sou abordado. Depende sobretudo da imagem que eu faço da pessoa na altura.

Lembro-me de uma vez que fui abordado perto de uma estação de comboio por uma pessoa que me pediu 5 euros para o comboio. Era um homem adulto aparentemente são, que invocou razões de ordem contextual (tinha perdido a carteira, ou qualquer coisa do género) para não ter dinheiro para ir para casa.
Eu já estava dentro do carro a sair do estacionamento, mas mesmo assim voltei a estacionar o carro e fui com essa pessoa ao multibanco levantar dinheiro para lho dar (eu tinha apenas 20 euros na carteira, que ele não me pediu quando lho disse - e que muito provavelmente eu não ofereceria).

Fi-lo porque a história (e a postura) dele me convenceu. Porque me consegui imaginar numa situação semelhante e sobretudo porque eu tinha tempo para o fazer.
O que eu fiz foi imaginar-me no lugar dele (ou em que ele afirmava estar) e imaginei o que é que eu pensaria e diria naquela situação - e o discurso dele estava perturbadoramente perto do discurso que eu imaginei para mim próprio naqueles segundos.
No final, quando lhe dei o dinheiro ele pôs-me as duas mãos na cara e agradeceu-me.
Possivelmente a história era forjada, possivelmente dei dinheiro a um preguiçoso ou intrujão. Possivelmente corri o risco de ser assaltado pelas costas enquanto ia ao multibanco ajudar alguém que não conheço.
Tudo isto me passou pela cabeça naquela altura, mas o que me fez mover foi: "e se isto me acontecesse a mim, o que é que eu faria? O que é que eu acharia da pessoa que estivesse no meu lugar?". O que é um facto é que se fosse no dia seguinte em que eu estivesse com mais pressa ou com menos paciência possivelmente não lhe teria dado nada.

Recentemente aconteceu-me uma situação curiosa: na rua com um grupo de amigos fomos confrontados por uma pessoa que nos pediu dinheiro para uma causa (supostamente meritória e fidedigna). Na altura eu hesitei - se estivesse sozinho a minha resposta teria sido provavelmente um não. Todas as pessoas ficaram suspensas durante uns momentos, até que uma delas decidiu oferecer o dinheiro pedido - logo de seguida se gerou um movimento de grupo em que a maioria das pessoas decidiu oferecer.
Duas das pessoas decidiram não oferecer (foram mais fortes e consistentes que eu, que acabei por ceder à pressão de grupo). No final uma delas sentiu a necessidade de explicar porque é que não tinha oferecido (ou pelo menos esta foi a minha interpretação daquilo que ele disse).
Na realidade acho que qualquer das pessoas que não ofereceu acabou por agir melhor que eu. Por vezes gostaria de ter a coragem de o fazer.

Mendicidade - oferecer ou não oferecer? (I)

Sempre que alguém na rua me pede dinheiro faço uma reanálise da minha opinião sobre mendicidade (ou sobre peditórios de rua, ou qualquer outra actividade que envolva alguém que não conheço pedir-me que ofereça algo voluntariamente - quase sempre dinheiro).

Segundo os meus princípios não devo contribuir nestas situações. Para mim isto é bastante claro: acho que não devo encorajar a mendicidade - segundo aquilo que acredito qualquer pessoa tem direito a escolher o tipo de vida que quer, mas deve estar preparada para acarretar com as consequências dessa escolha. Este princípio torna muito fácil a resposta quando sou abordado por alguém que acho possuir todas as condições para poder ter um trabalho/vida normal e que OPTOU por uma vida de mendicidade ou dependência da boa vontade alheia - nomeadamente pessoas jovens e aparentemente sãs.

Mas e o que dizer de pessoas que obviamente ou aparentemente não têm condições de ganhar o seu sustento? O que fazer face a um idoso, uma criança ou um aleijado? Ou face a uma pessoa que simplesmente alega não ter outra alternativa senão depender da boa vontade alheia?

Bem - nestas situações começa a ser mais difícil aplicar fielmente os meus princípios. Se é verdade que acredito que a mendicidade nunca será a solução para o problema, o facto é que consigo imaginar um leque alargado de situações sem qualquer outra solução. Acontece que a minha filosofia é a de que uma resposta é adequada APENAS SE fornecer uma solução para o problema, pelo que por vezes os meus princípios podem não ser uma resposta adequada.

Adicionalmente existem outros factores que entram em jogo quando formo uma decisão neste tipo de situação:
- A primeira é de ordem sentimental: a compaixão. Para mim é difícil ver outro ser humano rebaixar-se ao ponto de ter que me mostrar a sua incapacidade para tentar conseguir que eu o ajude. É-me penoso ouvir histórias de miséria e frequentemente não consigo pensar que a história pode ser simplesmente inventada. Por outro lado faz-me impressão a indiferença social que cada vez noto mais a pairar no tipo de sociedade em que vivemos e tenho sérias dificuldades em não ajudar alguém que me pede directamente ajuda.

- A segunda é de ordem prática: a realidade é que é muitíssimo provável que o que me pedem para oferecer tenha muito mais valor para quem recebe do que para mim. Se calhar para uma pessoa na minha posição 1, 2 ou 5 euros são na prática insignificantes, enquanto que para alguém que se vê obrigado (ou que escolhe) pedir na rua pode ser a diferença entre uma refeição ou a inanição (embora por outro lado o dinheiro possa ser usado para causas bem menos nobres).

- Existe ainda um terceiro factor que me custa bastante mais a confessar: o egoísmo. Por vezes acabo por oferecer não tanto por questões de princípio, sentimentais ou práticas - mas antes porque simplesmente quero afastar a pessoa de mim. Por vezes estou simplesmente com pressa, estou cansado ou não quero aturar a outra pessoa e a solução mais rápida é simplesmente "pagar para não me chatear".
Acho que esta é a pior razão que pode existir para fazer uma oferta. Em primeiro lugar mostra uma certa falta de humanidade da minha parte - eu simplesmente nem quero saber, quero apenas que a pessoa me largue e se vá embora, o que é contrário ao princípio da caridade.
Em segundo lugar (e ainda mais importante) porque acaba por "favorecer" as pessoas que são simplesmente insistentes ou chatas enquanto que "prejudica" aquelas que são mais reservadas ou que até se esforçam por me incomodar menos. Em relação aos meus princípios, acabo por estar a "premiar" a pessoa que tem menos mérito e a "prejudicar" a que apresenta um comportamento mais meritório.
Por último, como já disse noutro post considero que o "pagar para não me chatear" é algo intrinsecamente negativo e anti-social, que devo corrigir na minha actuação.

A verdade é que já o fiz - e sempre que noto que isso acontece fico muito irritado comigo mesmo (o que não me tem impedido de cair de novo no mesmo erro).

(continua no próximo post)

Os cheiros

Tenho uma certa facilidade em dividir a minha vida em fases mais ou menos distintas. As diferenças na minha maneira de ser entre essas fases são suficientes para que normalmente lhes chame simplesmente de "vidas", de forma a salientar a importância da transicção.

Uma das alterações que me faz mais confusão de relacionar entre diferentes "vidas" é a minha relação com os cheiros.
Numa "vida" anterior tive uma namorada que me dizia frequentemente que eu tinha anósmia - que é como quem diz, não conseguia identificar cheiros. Olhando para trás realmente tenho que lhe dar alguma (não toda) razão - embora na realidade a minha principal dificuldade fosse em distinguir a marca do perfume que ela usava (o que por vezes me causava ligeiros dissabores, visto que era uma coisa a que ela dava muita importância).

Hoje em dia dou por mim a dar uma grande importância aos cheiros que me rodeiam. Apesar de ainda não conseguir distinguir a marca dos perfumes que passam por mim no dia-a-dia o facto é que noto muito mais os cheiros - e que uso conscientemente essa informação para tirar conclusões.
Sei também quais são os cheiros que gosto ou não gosto particularmente: por exemplo não gosto de cheiro a tabaco, café ou chocolate (por estranho que possa parecer) e delicio-me com cheiro a laranja, a flores e polen (ao qual sou infelizmente alérgico) - recentemente o cheiro das tílias e das jacarandas do bairro alto quase que me fez querer dormir na rua. Se não fosse a minha alergia acho que me dedicaria rotineiramente a orgias olfactivas (frequentemente mudo o meu caminho apenas para poder passar por um sítio que cheire a pólen).

Existem também alguns cheiros que têm um significado especial para mim. Alguns cheiros fazem-me lembrar algumas pessoas, outros fazem-me lembrar sítios onde estive. É frequente um cheiro activar memórias antigas, o que me leva normalmente a uma certa nostalgia.

Um conjunto de cheiros que me lembro particularmente bem são os cheiros de quando jogava hoquei. Lembro-me perfeitamente que no princípio dos treinos o pavilhão cheirava a cera - e se os treinos fossem de dia o cheiro era particularmente forte por causa do calor e do sol que entravam pelas janelas do pavilhão. Quando começávamos a patinar o som dos rolamentos começava a ecoar pelo pavilhão deserto e começava a sentir-se o cheiro a óleo e massa consistente das rodas. Quando o treino já ia avançado começava a cheirar a borracha queimada das travagens e mudanças de direcção, e as luvas começavam a cheirar a suor. Depois do treino era o cheiro das toalhas molhadas do duche, o cheiro (muito característico - e não, não era cholé) das botas dos patins e o cheiro a suor de todo o equipamento que estava em contacto com o corpo.
É engraçado que por exemplo o squash não tem cheiro - é inodoro, asséptico - a única excepção é a bola, que frequentemente cheira a borracha aquecida (mas apenas se a puser perto do nariz, um sítio onde é esperado que a bola não passe muito tempo num jogo civilizado).
No ténis de mesa o cheiro predominante é o cheiro da cola da raquete, mas que normalmente se perde um bocado quando o recinto de jogo é muito grande.

Apesar de dar esta importância aos cheiros e de frequentemente ser capaz de identificar uma pessoa pelo cheiro, hoje em dia não costumo usar perfume. Limito-me a usar desodorizante (não suporto cheirar mal - é algo que me faz ir a correr envergonhado para casa tomar um duche). Não sei porque é que deixei de usar, mas o facto é que durante esta última "vida" ofereci-os todos...

As jacarandas do bairro alto

Recentemente fui jantar ao bairro alto. Ao contrário do que costuma acontecer tive a felicidade de chegar lá ainda de dia e o que vi surpreendeu-me.


Depois de tantos anos a frequentar esporadicamente o bairro alto (há que dizer que não é um dos meus sítios preferidos) só agora é que descobri que desde o rato, passando pelo príncipe real até ao largo do carmo existem uma série de árvores que acho francamente belas - nomeadamente Jacarandas.

Há que dizer que a Jacaranda foi uma árvore que me fascinou numa viagem que fiz a áfrica. É uma árvore que tem umas flores violeta, que em certas alturas do ano caem aos magotes. Estas flores são pesadas o suficiente para não serem facilmente levadas pelo vento, pelo que ficam espalhadas no chão à volta da árvore - são também em quantidade suficiente para formarem um tapete circular quase perfeito à volta do tronco e a sua cor é tão forte que normalmente sobressai facilmente face ao solo. O contraste entre o chão violeta e os ramos semi-despidos ainda com braçadas violetas fazem com que dê uma cor vibrante a toda a área em que se encontram.


Fiquei tão contente pela minha descoberta que decidi dar um passeio pelo bairro alto a seguir ao jantar. Infelizmente já andavam a lavar a rua, e por isso já se viam menos folhas no chão - seja como for os carros estacionados debaixo das árvores ainda estavam carregados de flores e ainda se viam vestígios pelos passeios a provar que as flores lá tinham estado - a falta de luz também fez o efeito esmorecer um pouco (tenho que lá voltar de dia).

Entretanto passeei um pouco pelo jardim do príncipe real. Fiquei simultaneamente contente ao aperceber-me que o jardim tem uma série de árvores exóticas (ou pelo menos não nativas) impressionantes, e triste por perceber que de todas as vezes que tinha passado por lá nunca realmente tinha olhado com atenção para o que lá havia.

Sempre que isto me acontece fico a pensar na quantidade de coisas importantes e/ou interessantes que me escapam no dia-a-dia e como devo ser cego em algumas situações - é normalmente suficiente para uma forte e surda auto-reprimenda, mas o que é um facto é que por vezes parece que simplesmente não tenho tempo para olhar e apreender o que se passa à minha volta (o que vai claramente contra alguns dos meus princípios de vida mais fundamentais).


A surpresa maior foi o largo do carmo. De repente vi o largo como nunca tinha visto - completamente populado de tílias e jacarandas que só me pareciam terem nascido e crescido desde a última vez que lá fui - como é que é possível que nunca me tivesse apercebido? O chão e as mesas das esplanadas estavam completamente sarapintadas de violeta e havia um cheiro inebriante no ar... Nem me apetecia sair de lá! Os restantes traseuntes deviam estar a estranhar ver à 1h30m da manhã uma figura a deambular sem direcção a olhar para o ar e a cheirar - por outro lado é o bairro alto, pelo que provavelmente acharam que eu era apenas mais um excêntrico.


Outra coisa curiosa foi a reacção das pessoas que estavam comigo quando disse que ia passear só para olhar para as árvores. Suponho que os meus amigos não estavam a imaginar-me a caminhar pelo bairro alto depois da meia noite só para ver e cheirar árvores... Pelos vistos nunca me viram a escolher o caminho mais bonito (em vez do mais rápido) para ir para o emprego - ou se calhar nunca pensaram que por vezes faço mil quilometros só para poder ver o Gerês durante um fim de semana.

Acho que não fui muito bem sucedido na minha tentativa de lhes explicar as minhas motivações. Pode ser que este post ajude...

Monday, June 4, 2007

Quanto é que vale um bom padeiro

Acredito que existem sempre várias maneiras de resolver qualquer problema. Acredito também que raramente é possível identificar uma maneira como sendo a melhor em qualquer situação - para mim a panaceia universal não existe.

Dito isto, tenho também que acrescentar que acredito que cada pessoa tem uma maneira ligeiramente diferente de resolver cada problema de todas as outras pessoas - e que são as pequeníssimas diferenças na forma de resolver cada situação que se nos deparam que nos tornam a todos MUITO diferentes e que fazem com que algumas situações fiquem muito melhor resolvidas que outras. É por isso que não costumo recorrer a uma só pessoa para resolver todos os meus problemas (bem, a não ser talvez a minha mãe :)), mas normalmente procuro a pessoa indicada para cada situação.

Isto acontece quando eu quero resolver um problema - mas e em relação à maneira como avalio os outros?

Bem, na minha avaliação das pessoas não ligo muito à IMPORTÂNCIA do problema a ser resolvido, mas sim à FORMA como o problema é resolvido - para mim isso é o que separa os que valem dos que não valem, os que sabem dos que não sabem, os que merecem dos que não merecem. Pelo contrário, frequentemente a minha apreciação é inversamente proporcional à importância do problema resolvido, porque a dedicação e capacidade de desempenhar bem uma tarefa considerada menor pelos outros é algo que mostra capacidade e (sobretudo) carácter acima da média - confesso que ainda dou valor ao antiquado "pobre mas honrado". Não sei se algumas pessoas me verão como um pragmático que apenas quer saber do resultado - nada poderia estar mais errado. A mim não me interessa tanto ganhar, como saber como é que a vitória foi conseguida. Normalmente gosto mais do prazer da luta do que da doçura da vitória.

Certa vez trabalhei num local onde havia uma grande cantina. Só haviam duas caixas para pagar e frequentemente haviam filas grandes. Lembro-me bem de uma das pessoas que de vez em quando trabalhava naquelas caixas a receber o pagamento. Eu ficava sempre hipnotizado a vê-la trabalhar, tal era a sua eficácia - parecia que cada gesto tinha sido pré-calculado para minimizar o esforço e maximizar o rendimento. A fila dela podia ter o dobro das pessoas que eu escolheria sempre aquela caixa - porque sabia que as minhas probabilidades de sair dali mais depressa eram bastante maiores naquela caixa. Sinceramente cheguei a lamentar o facto de em termos de sociedade não haver o hábito de dar gorjeta a pessoas que recebem o pagamento na caixa. Confesso que também nunca a elogiei directamente porque sempre achei que isso poderia ser mal interpretado. O que é um facto é que aquela pessoa mostrava uma eficiência tal que ainda hoje me lembro bem dela e da forma como trabalhava - isto numa posição que é considerada pela sociedade como de importância secundária.


Um destes dias ouvi (li) um amigo meu a estranhar terem-lhe dito que até como padeiro se sairia bem. Pareceu-me que ele não atribuiu o valor devido a um elogio desses. Pois eu responder-lhe-ia: que grande elogio que te deram!

Tuesday, May 29, 2007

Se eu ganhasse o euromilhões...

Uma frase que ouço regularmente é esta: "ai, se eu ganhasse a lotaria/euromilhões/montes de dinheiro...".

Quando é dita por alguém com quem eu tenha uma relação suficientemente boa para manifestar a minha opinião, geralmente segue-se uma conversa que me soa sempre familiar.

Há várias razões que me levam a detestar esta frase. Em primeiro lugar (tal como já escrevi num post anterior) não acredito em jogos de sorte ou em ganhar dinheiro (ou seja o que for) imerecidamente. Acredito que para ter valor uma coisa deve ser conquistada e não simplesmente cair-nos no colo.

Só por si isto seria razão suficiente para que eu reagisse mal a esta frase - no entanto existem outras razões para não gostar desta postura.

Considero que dizer que se quer tudo em troco de nada e de graça é uma fuga ao mundo real e à forma como as coisas devem funcionar. Quem me diz que queria em dois dias ganhar todo o dinheiro que precisa para o resto da vida está-me a passar uma mensagem de que:

a) Não gosta do que faz

b) Não quer trabalhar para viver

c) Acha que todos os seus problemas (ou pelo menos os principais) se resolvem com dinheiro

d) Acha que ter muito dinheiro é bom e que não ter é mau

Geralmente digo isto às pessoas (é o segundo passo da conversa). Nesta altura as pessoas começam a defender-se - geralmente dizem-me que até gostam do que fazem e que querem trabalhar para viver, mas sem precisar do dinheiro (para que possam mudar de emprego à vontade se assim o quiserem).

Geralmente dizem-me que o dinheiro não resolve os problemas todos, mas resolve os principais - e frequentemente dizem que ter muito dinheiro não é bom, mas antes que ter muito dinheiro é MUITO bom - simplesmente porque sim. Até parece que a felicidade está directamente indexada ao dinheiro - parece ser um princípio demasiadamente enraizado na nossa cultura.

Quando consigo tento mostrar as inconsistências de alguém que até gosta e quer trabalhar, mas apenas quando e onde quer (até parece que trabalhar é o mesmo que ver televisão). No entanto normalmente não demora muito tempo até a conversa passar para a fase seguinte.


A fase seguinte (e frequentemente final) desta conversa é quando as pessoas me perguntam o que é que eu faria se ganhasse este dinheiro todo. Quando respondo que isso seria muito difícil porque não jogo, as pessoas começam a inventar cenários em que o dinheiro se materializa nos meus braços de forma a obrigar-me a responder.

Quando digo que depende muito da forma como esse dinheiro me fosse parar às mãos, mas que provavelmente não aceitaria frequentemente sou gozado e descreditado. No meu ver esse dinheiro seria na melhor das hipóteses imerecido e na pior ilegal, pelo que dificilmente quereria associar-me a essa situação.

Esta fase da conversa começa normalmente a ser um pouco agastante para mim, porque nesta altura estou a dizer que a situação é virtualmente impossível de acontecer e mesmo que se acontecesse provavelmente eu não aceitaria o prémio a menos que achasse que o merecesse - e a resposta que ouço é incredulidade - alguém que me faz uma pergunta perfeitamente irreal e que não aceita a minha resposta porque a acha irreal...

Frequentemente as pessoas começam a perguntar-me se eu daria tudo para beneficiência - nesta altura já não vale a pena tentar explicar que a questão principal não é o que eu faria com o dinheiro, mas como é que ele tinha vindo parar a mim - e que a distribuição desse dinheiro seria feita o mais possível de acordo com "quem é que merece ficar com este prémio?".

Como nunca me aconteceu (e dificilmente há-de acontecer) não consigo provar que agiria desta forma, pelo que sou tomado como um idealista oco cheio de garganta e longe da realidade (há que dizer que já me aconteceu ganhar prémios monetários - normalmente associados a algum trabalho que fiz. Estes prémios não me põem qualquer questão moral e aceito-os sem reservas, o que frequentemente é tomado como uma prova de que não sigo os meus próprios princípios).

Um outro caminho interessante que por vezes esta conversa toma é quando eu forço as pessoas a completarem a frase:


"e o que é que farias se ganhasses todo esse dinheiro?"

Frequentemente (nem sempre) as pessoas inventam num minuto um sonho de vida - uma casa enorme, uma viagem à volta do mundo, etc.

Quando começo a explorar um pouco mais o tema começam a baquear: "uma viagem onde? Porque é que ainda não foste lá? Para que é que querias uma casa tão grande, para nunca mais teres que ver a tua mulher/marido?"

Aí as respostas começam a ser mais hesitantes e menos rápidas...

Há que salientar que normalmente faço esta conversa com pessoas da classe média - média-alta, que frequentemente têm acesso a uma viagem relativamente cara por ano e que vivem numa casa que apesar de não ser luxuosa dificilmente se poderá considerar de baixa qualidade.

Para mim é uma pena observar a ideia que as pessoas têm de que seria uma felicidade ter a vida arruinada por sorte (imerecida) em demasia - observar que as pessoas não percebem que o que dá interese na vida é o acto da conquista e não a posse do império (bem - pelo menos para mim é assim...). Espero não vir a ter a infelicidade de perder a possibilidade de ganhar a minha vida.

Em jeito de conclusão tenho que dizer que considero-me uma pessoa a quem não falta nada de básico - aceito perfeitamente que uma pessoa que não tem dinheiro para pôr os filhos na faculdade ou para comprar um livro nos anos da mulher queira/precise de ganhar dinheiro de alguma forma. Apenas me entristece quando isso acontece com pessoas que considero já terem mais do que precisam. Suponho que a diferença está toda na resposta à pergunta: "o que é que farias com esse dinheiro"...