2 igual no marcador.
Pelo grande pavilhão ressoa o barulho das outras mesas - bolas a bater em raquetes, mesas e chão, gritos de vitória, exclamações de fúria e desalento - a personalidade reflectida na forma de jogar de cada um dos jogadores.
Estamos no intervalo antes do quinto e decisivo set. Num canto da nossa área de jogo está a outra equipa a conferenciar com o treinador. Os nossos adversários têm um jogo parecido entre si- nota-se que estão habituados a jogar juntos - mas a postura é muito diferente, o que distorce a sua maneira de jogar, transformando-os em jogadores com características muito diferentes, que têm que ser contrariados de diferentes formas.
Um deles - um pouco mais experiente - está macambúzio, preocupado, irritado. Consegue vislumbrar a possibilidade da derrota, o que lhe está a estragar o jogo. É um jogador de defesa cuidadoso que joga para ganhar. Não gosto de quem joga para ganhar, embora me dê um prazer sádico vencer-lhes. O outro é mais novo, inexperiente - está a sempre rir-se de alegria. Ri quando ganha o ponto com uma boa jogada e continua a rir quando falha clarosomante uma bola fácil.
Gosto dele - gosto da postura dele. Não me importava de perder o jogo contra ele, mas contra o outro não - ao outro quero mesmo ganhar.
Noutro canto estamos nós, também a conferenciar. O meu colega é um pouco novo nestas andanças - a inexperiência lê-se-lhe nos movimentos ainda desajeitados. Cai frequentemente nas esparrelas que lhe estendem - mas não se importa. O que lhe falta em experiência compensa em coragem ingénua, fazendo pontos que ao fim de muitos anos ainda tenho medo de tentar. Neste momento está-se a rir - apesar de empatados, o jogo está a correr-nos bem. Gosto dele - gosto dele porque se estivéssemos a perder ele
também se estaria a rir - a rir dos pontos engraçados, dos pontos de sorte e de azar. Rir-se-ia da nossa azelhice tal como se ri agora do bom jogo que estamos a fazer. E
quer percamos ou ganhemos sei que vai saudar os adversários ainda com um sorriso sincero nos lábios.
Enquanto tento combinar uma estratégia para a última ronda (atacar? defender? apostar na azelhice dos outros, ou arriscar mais no jogo agressivo? Nunca tive muito jeito para esta avaliação) olho à volta e os meus olhos prendem-se no árbitro.
Está sentado numa pequena mesa não muito longe da mesa de jogo. É um sujeito magro e seco, com óculos e um bigode um pouco anacrónico. Já arbitrou jogos meus muitas vezes e é de certeza o árbitro que prefiro.Tem uma postura muito direita e correcta. O ar sempre sério de quem arbitra um encontro internacional. É perfeccionista, cuidadoso e sobretudo extremamente educado - talvez um pouco tímido.
Hoje está triste e chateado consigo próprio - há pouco enganou-se na ordem dos jogos e causou uma pequena confusão - nada de minimamente importante para o resultado final, mas o protocolo foi quebrado. Já nos pediu várias vezes desculpa, mas ainda não se desculpou. Acredito sinceramente (simultaneamente com pena e orgulho) que há-de ir para casa remoer o seu erro, apesar da sua irrelevância.
Não tem um braço - o direito, ainda por cima. Faz-me alguma confusão olhar para esta assimetria numa pessoa que vejo tão equilibrada. Sempre que a bola ressalta na sua direcção durante um jogo vou a correr apanhá-la, de forma a tentar evitar o embaraço e falta de jeito que usualmente lhe noto nestas situações. Quando não chego a tempo recuo, quase com medo de tocar-lhe no braço que nunca estaria lá. É curioso que ele próprio parece por vezes indeciso em escolher a mão com que há-de apanhar a bola para a devolver, mas parece-me já lhe ter vislumbrado por vezes uma mágoa íntima - talvez um suspiro de resignação - quando se convence que a escolha afinal é mais fácil do que deveria ser.
Apesar da minha curiosidade e interesse natural, nunca tive oportunidade (ou coragem?) de lhe perguntar nada. Não sei como é que se chama, como é que perdeu o braço nem como é que se veste de manhã - e gostava de saber. Provavelmente nunca vou conseguir saber porque é que...
Entretanto ele põe-se de pé e levanta os braços como se abrançando a mesa, anunciando o início do último set. Dirigimo-nos para as raquetes pousadas em cima da mesa ainda a discutir tácticas. Será que ainda vamos ganhar?
O que é que isso interessa?
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