Em meados do século XX um inventor chamado Anton Dvorak afirmou ter concebido um teclado científicamente superior ao QWERTY. Este teclado dá pelo nome do seu inventor e é consideravelmente diferente na disposição das teclas, sendo que foi desenhado não para evitar problemas mecânicos mas segundo os conceitos de ergonomia vigentes (e ainda hoje aceites) de meados do século XX.
Apesar de não se ter ainda conseguido provar que o teclado é de facto melhor em termos práticos, existem alguns estudos preliminares (bastante contestados, visto que foram conduzidos pelo próprio Dvorak em condições consideradas dúbias) que parecem apontar para uma pequena vantagem - e várias pessoas afirmam que em termos puramente teóricos o teclado é efectivamente melhor. Acontece que apesar dos esforços do seu inventor este teclado não conseguiu ser aceite pelo mercado (a não ser por uma pequena comunidade de aficionados) por uma razão muito simples: ninguém quer assumir o custo de abandonar o QWERTY e abraçar um teclado completamente diferente. Fazê-lo acarretaria um custo de reconversão do hardware, para além de um período de adaptação em que as pessoas seriam mais lentas e produziriam com menos qualidade. Assim, o QWERTY vai perdurando (aparentemente) por gerações.
Ora acontece que por volta de 1985 um economista (David) escreveu um artigo muito influente relacionado com falhas na forma como a economia de mercado funciona - e o principal caso que ele apontou em defesa da sua teoria seria precisamente o caso do QWERTY.Segundo este economista o teclado venceu (e continua a vencer) no mercado não porque seja melhor, mas porque tem um historial por trás. Evidentemente que ele escolheu a primeira versão da história para suportar as suas ideias - afinal, segundo esta versão o produto teria sido criado com uma finalidade (resolver um problema mecânico através da imposição de uma escrita mais lenta) oposta às necessidades actuais (escrever depressa). O sucesso do QWERTY não se deveria à qualidade do produto, mas ao facto de estar associado a outro produto (a máquina de escrever comercializada pela Remington que durante muito tempo dominou o mercado) que era superior aos outros produtos que competiam. Segundo ele, o que ganhou a batalha no mercado foi a máquina de escrever e não o teclado - que aproveitou a boleia e (ainda mais fantástico) sobreviveu à própria máquina de escrever.
Em 1999 dois outros economistas (Liebowitz e Margolis http://wwwpub.utdallas.edu/~liebowit/keys1.html) refutaram este artigo, sendo que um dos principais contra-argumentos era precisamente a incorrecção história - ou seja, defendendo a SEGUNDA versão. A diferença da versão é muito importante porque assim é muito mais difícil
demonstrar que o produto é inferior a outros produtos concorrentes - afinal, é bem possível que a optimização da máquina ande de mãos dadas com a optimização da sua utilização, enquanto que segundo a primeira versão o teclado seria sido construído DELIBERADAMENTE pior por razões técnológicas.
Mas afinal o que é que está em jogo? Porquê esta discussão? Porque é que David levantou este tema e porque é que é tão importante?
Bem, segundo a teoria económica dita "clássica" o mercado vai-se adaptando sozinho, rejeitando automaticamente produtos inferiores em favor de produtos superiores, de forma a fornecer ao consumidor o melhor produto possível (ou segundo outras correntes, o melhor produto NECESSÁRIO para satisfazer o consumidor).
Existem no entanto algumas razões para que isto não aconteça sempre - em que um produto inferior vence, essencialmente devido a questões históricas - eis as três debatidas por David, Liebowitz e Margolis:
- Influência da existência de uma rede de utilizadores de um produto, em que a escolha de uma pessoa é influenciada pela existência prévia de um conjunto de utilizadores que já utilizam esse produto. Um excelente exemplo português em que isto foi evidente foi a dificuldade inicial de outras operadoras telefónicas conquistarem mercado à TMN, pela simples razão (puramente histórica - ou seja, independente da qualidade do produto) que esta já detinha uma rede de utilizadores devido ao seu monopólio temporário.
- Influência do caminho seguido para chegar ao produto final - em que a forma final do produto resulta não de um estudo efectivo da forma mais eficiente e "melhor", mas sim da forma escolhida para criar o produto. Um exemplo deste problema seria por exemplo os disputados standards de HTML, que não foram desenhados desde o princípio mas foram evoluíndo até chegarem a um estado final bastante confuso e sub-óptimo (embora toda a internet viva à sua custa).
- Existência de produtos sub-óptimos estáveis e firmados no mercado (máximos locais) que impossibilitam a adopção de soluções melhores por questões (essencialmente) de custos de transição ou de pura inérica (que também acaba por ser um custo de transição).
Ora, tanto David como Liebowitz e Margolis reconhecem estes problemas e endereçam-nos nos seus artigos. No que eles não concordam
(http://www.utdallas.edu/~plewin/QWERTY%20condensed.pdf) é sobre o que se deve fazer em relação a isso:
David é a favor de uma intervenção do estado sobre o mercado de forma a tentar "desmanchar" e evitar máximos locais, enquanto que Liebowitz e Margolis são a favor de que se o próprio mercado não responde então é porque efectivamente não há vantagem suficiente no produto para justificar a sua adopção. Segundo eles a influência do estado cria condições artificiais que vão contra as regras da economia de mercado e pode dar origem a erros grosseiros, uma vez que frequentemente é impossível para uma autoridade central saber qual é efectivamente o melhor produto.
É possível que pessoas que trabalhem na mesma área que eu já estejam a ver mais outra pérola a surgir: de facto estes argumentos estão no centro da argumentação sobre o caso antitrust da microsoft, em que o estado influenciou o mercado tentando romper uma vantagem competitiva decorrente não da qualidade de um produto mas de razões históricas e de uma tentativa de alavancar um produto através de outro (tal como aconteceu com a máquina de escrever/teclado QWERTY).
Conclusão:
Olhando para as datas (século XIX, meados do século XX, 1985 , 1999) uma pessoa pode pensar - mas e que relevância poderá ter isto no século XXI?
Considerem então as seguintes perguntas:
- Qual seria o custo de converter toda a infraestrutura existente hoje em dia à volta da gasolina/gasóleo por uma infraestrutura à base de uma energia alternativa?
- Qual seria a reacção do mercado em adoptar uma alteração desta dimensão?
- Qual deveria ser a posição do estado nesta eventual transição?
Isto para não falar dos antitrust contra a microsoft, que ainda são notícia por esse mundo fora.
Nota: não deixa de ser interessante notar que nas minhas buscas cheguei ao antitrust da microsoft a partir do QWERTY e não ao contrário... Confesso que para mim foi uma verdadeira epifania encontrar estas relações entre histórias aparentemente tão pouco relacionadas.
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